Luiz da Câmara Cascudo
- Foto do Google.
O Vinho São
Julião
Saturnino
apreciava muito os bons vinhos. Gostosamente, enchia a boca a recordar os
vinhos italianos ou do porto, na sua predileção: Casal Garcia, Lacrima Christi,
Dom José. E sempre que alguém lhe oferecia um cálice de um desses vinhos
repetia. Em espanhol, que venga. Ao
saboreá-lo, exclama em francês, pronunciando a corriqueira frase: comme il faut; e logo traduzida ao seu
gosto – como é preciso degustá-lo. Charmeur!... Luiz de Barros e Roberto Freire
lhe proporcionavam momentos alegres quando o convidavam a deleitar-se com esses
capitosos vinhos, nem sempre ao alcance de seu bolso. Não lhe ajudava tanto
comprá-los o minguado salário de professor.
Com o
advento do Clube dos Inocentes estava muito em moda o vinho fabricado no Brasil
e rotulando com São Julião. Saturnino gostava dele tinto. Sempre que podia,
comprava-o e bebia em companhia de amigos. Onde quer que se reunissem os
Inocentes, lá estava presente o saboroso São Julião. Às vezes, o S.Julião era
substituído pelo Cabeça de Touro: fazia-nos lembra de São Firmino.
Lembrei de
se fazer de São Julião, simbolicamente, o padroeiro do Clube. Finalmente, nas
comunidades católicas, todos os sodalícos têm o seu santo protetor. Santo Antão
é padroeiro dos animais domésticos, acumulando essas prerrogativas sagradas com
os coveiros, açougueiros e cesteiros, segundo se lê no Dicionário prático do
Mons. Castro Pinto. Os escoteiros têm S.Jorge. Os fabricantes de cerveja
merecem três: Santo Agostinho, São Lucas e S. Nicolau de Mira. Os vendedores de
vinho valem-se de Santo Amando. Até os leitores têm Santa Brígida, embora eles
ignorem essa proteção divina e por isso ponham água no leite. Deveriam ser
presos. Nesse caso estariam bem prestigiados porque teriam como protetor São
Pedro em Cadeias.
Ora, diante
de uma devoção tão santa, catolicamente instruída para o bem das almas, por que
não poderíamos, nós, os Inocentes, ter o nosso santo protetor? E ficou certo,
Inocentemente, que São Julião seria o nosso padroeiro. Então lembrei a
Saturnino aquela segunda Novela do Decameron, em que Boccaccio faz Filóstrato
conta diante das sete mulheres venturosas fábulas na qual São Juliano obra o
divino milagre da sorte. Vale a pena resumi-lo para que se experimente a
eficácia da fé.
Na bela
fábula bocaciana, Rinaldo d’Assi era um comerciante próspero. Não era católico,
mas também não era ateu. Esquecera-se de todas as orações aprendidas na
infância. Contudo, conservou-se devoto de São Juliano porque viajava muito e
esse santo, na Idade Média, era padroeiro dos viajantes. A São Juliano dedicava
todo santo dia um padre-nosso, única oração que ainda alimentava no subconsciente.
Dificilmente o homem se livra de alguns hábitos religiosos adquiridos na infância.
O que fica na memória, a tendência é repeti-lo. São Juliano. Convém explicar,
quando ainda mortal e humano, tornou-se perverso e desumano: matou o pai e a
mãe, mas isso aconteceu por engano, pelo mesmo motivo de Édipo, isto é, sem o
saber. Ao cair na realidade, arrependeu-se e não guardou nem um complexo de
culpa, como o infeliz da fábula grega; graças a Deus. A coisa mais bela desse
mundo é um pecado arrependido. Está provado que pecado dessa natureza levam o
pecado ao céu pela força mesmo do arrependimento. Deus assim o consente como
prova, pelo mesmo motivo que permitiu em outros evos do infinito longínquo, a
rebelião dos anjos para que existisse o inferno destinado a castigar aqueles
que não se arrependem dos seus erros. E a nossa Santa Igreja tem São Pedro como
seu mais legítimo representante, a quem, aqui na terra, lhe foi dada a fé
inabalável de divino notário, ele que negara o Mestre três vezes. Além da fé do
divino oficio, recebeu as chaves que abrem as portas do céu. E as portas do
céu. E as portas do céu se abriram para São Juliano. Por isso, Rinaldo lhe era
devoto. Em uma de suas viagens por estradas frequentadas por bandidos e
ladrões, Rinaldo foi assaltado e abandonado quase despido, numa encruzilhada.
Era noite, noite escura e fria. Em Castel Guglielmo, morava um viúva rica,
jovem a bela, já agora amante do marquês Asso de Ferreira. Mas Rinaldo não
sabia disso. Castigo pelo frio, deparou-se com uma casa que projetava o seu
teto para fora, tomando-a como abrigo. Era exatamente a casa da jovem viúva,
amante do marquês. Reinaldo não esqueceu de rezar o padre-nosso a São Juliano.
E quis o santo protetor que o marquês não viesse naquela noite conforme
prometera. Tem a fê um poder extraordinário: remova montanhas e afasta
marqueses. Juntos ao alpendre onde se abrigava o infeliz e penitente viajante,
pelo lado de dentro, ficava o banheiro e a bela viúva entrou para banhar-se. Durante
o banho ouviu, assustada, alguns gemidos vindo de fora. Então ordenou a sua aia
que verificasse o que acontecia. A doméstica saiu e descobriu o pobre Rinaldo
encolhido de frio a se maldizer da sorte. De volta, informou tratar-se de
pessoa de boa aparência e com ares de fidalguia, embora acabrunhado na sua
humilhação. A viúva, que era muito humana, mandou-o entrar. Viu-o e apiedou-se
dele com os olhos concupiscentes. Deu-lhes as roupas do falecido marido, que
por sinal lhe sentaram adequadamente, e mandou que se banhasse com sais
aromáticos, na sua própria banheira. E depois de tudo isso se deram muito bem
como já se conhecessem há meses. Não precisa insinuar o que aconteceu. Os dois
foram para a cama e saciaram os desejos nos velados segredos da alcova, ambos
muito bem amparados pela proteção do seu anjo da guarda, no caso, São Juliano.
Nunca as orações de um devoto foram tão bem atendidas pelo seu patrono. E com
isso fica bem assegurada a eficácia da fé (instrumento de persuasão) associada à
doutrina do provérbio português: o bocado não é para quem o faz , mas para quem
o logra.
Relatei esse belo conto a Saturnino, com as
minhas observações e deduções. Ele gostou e me pediu emprestado o Decameron. E
por essas e outras, São Julião entrou, engarrafado, para, com o seu espírito,
animar o Clube dos Inocentes, tornando-se, simbolicamente, seu padroeiro. (Págs. 28/31) - Saturnino, Cascudo e o Clube dos Inocentes - 1ª edição - Porto Alegre - 1992.
José Melquíades
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