domingo, 13 de outubro de 2013

O Clube dos Inocentes - Autor: José Melquíades. FINAL

Saturnino, Renato e Cascudo



Lá pelos meados de 1953, quando eu contava 6 meses de casado, num belo domingo ensolarado, chegam lá na minha casa, Saturnino, Renato Gouveia e Câmara Cascudo. Morava no mesmo local, onde ainda moro, numa casa que mandei derrubar e sobre seus escombros levantei uma outra: minha residência de hoje. O bairro não se chamava Santo Reis, a região era deserta, cheia de morros e dunas, conhecida por Montagem ou Praia da Limpa. Havia luz,  mas não existia água encanada. Seus poucos habitantes obrigavam-se a recorrer a chafariz ou servi-se da água salobra dos reservatórios do porto, destinados a lastro dos navios. Bem, isso não vem muito ao caso; serve apenas de ilustração ao fato. Lá me aparecem Saturnino e Cascudo num velho carro Ford dirigido por Renato do banco. Renato já se tinha confirmado na presidência do Clube dos Inocentes e essa ingênuas criaturas resolveram fazer-me uma visita  domingueira Saturnino soltou so carro, todo de branco, paletó e gravata, sobrecarregado com uns pacotes que, desembrulhado, resultaram em um “tira-gosto” para bebidas. Cascudo também de paletó e gravata trazia, bem agarrado pela aselha, um botijão do famoso e milagroso vinho S.Julião. Renato, o único em traje esporte, apesar de paulista, conduzia umas garrafas de cerveja. Os três bem ou mal intencionados, entraram de casa a dentro sorridentes e pilheriantes:
- Os Inocentes atacam de manhãzinha, disse Saturnino, enquanto Cascudo acendia o enorme charuto de sua preferência – o Danemann. Cada um repetiu a senha do clube: Rei-Vassalo. Quem não gostou da brincadeira foi minha mulher que tinha horror a “cachaceiros”, conforme classificou o trio inocente. Sentaram-se os três bem aboletados, ao gosto de Saturnino, e os deixei a vontade, enquanto confabulava com minha esposa, a qual, a esta altura, estava possessa de raiva e antipatia pelos ilustres visitantes.
Minha esposa, até então, jamais vira Renato Gouveia e desconhecia Câmara Cascudo. Por outro lado, Cascudo, na época, além de sua grande contribuição a História do Rio Grande Do Norte e seus estudos de Folclore, fora de casa, começava a projeta a sua “enorme sombra” no  Canto de Muro, ele mesmo brincando com aquela bicharada toda que se movimenta no romance. Os originais desse livro foram enviados ao mestre Sartunino e lá, no seu Curso 91. Onde eu lecionava latin. Mas isso é assunto para a biografia do Professor Saturnino.
Minha mulher ignorava todos esses pormenores literários e não estava interessada em fama de ninguém. Bastava já a incipiente “fama” de seu jovem marido – “a de se acompanhar com esses cachaceiros”. Portanto, os três não passavam de importunos e inoportunos.
Ela os considerava intrusos. Não houve, nesse mundo, quem a convencesse de que eles eram inocentes. Para ela eles eram realmente instrujões. E quem ficou no canto do muro fui eu. Pacientemente voltei ao encontro do grupo. Saturnino tirava o paletó e Cascudo mastigava o charuto já pela metade.
- Vamos começar os trabalhos, gritou Renato com seu sotaque paulista. Abriu-se o vinho, arrumei as taças na mesa, Cascudo “debulhou” um peixe a haja “água” a escorrer pela garganta. Em pouco tempo secou um dos botijões de vinho. Mas eles traziam outro de reserva, o espirituoso patrono do Clube, o já conhecido São Julião. Acabou-se o tira-gosto. Pedi a minha mulher para preparar carne, o que ela fez muito a contra-gosto, porque não perdoava os bebedores. A manhã se esgotou no calor do vinho. Na cozinha, um pouco distanciada, minha mulher, tristemente se maldizia e praguejava contra mim e os inocentes. Saturnino ouviu, por acaso, alguns lamentos e me perguntou o que se passava. Respondi que ela estava muito satisfeita com a nobre visita. Saturnino chamou-a, pediu umas laranjas e lhe disse:
- Minha senhora, estou muito alegre pela sua compreensão. A senhora deve orgulhar-se muito do seu marido, mas deve se orgulhar mais ainda de ter recebido, em sua casa, a visita do maior historiador do Rio Grande do Norte, o Dr. Luiz da Câmara Cascudo. Luiz pegarreou engrandecido e virou o copo. Minha esposa riu-se com aquele riso sardônico que demonstra desdém; furor arma ministrat; e isso porque não podia mordê-lo na venta. E travou-se o maior dilema na minha vida de casado, até hoje. É que minha mulher me chamava lá dentro e, enraivecida, inconformada, esbravejando, repetia-me usando as suas armas a maneira de Vírgilio:
- Eu vu me orgulhar desses cachaceiros safados, que além de atrapalharem o nosso domingo, ainda exigem que lhe faça comida! Saturnino percebeu em alguns momentos o resmungo, mas já bem animado pelos favores de S.Julião, não penetrava no diálogo e me perguntava:
- A senhora está mesmo satisfeita?
- Satisfeitíssima e, sobretudo, orgulhosa de ter, em nossa casa, o maior historiador do século, respondia-lhe eu. Mas o drama continuava. Eu entrava e saía, entre a dor e o riso simulado. Furor arma ministrat – é assim que Vírgilio descreve, no I Liv. da Eneida, a rebelião de uma cidade onde as pedras eram jogadas de todos os lados. Iracunda, minha mulher atacou, sem pedradas, apenas por um lado sponte sua:
- Quando é que esses três porcos imundos vão sair de nossa casa? Será que vão ficar pra dormir, também! Era só o que faltava! Agredia-me minha querida esposa.
E Saturnino chamava-a educadamente e lhe observava: noto que a senhora está muito satisfeita: no futuro vai orgulhar-se de nos ter recebido; não por mim, mas pelo mestre Cascudo. Não esqueça. De fato, não esqueceu; nem eu.
Depois de comerem toda a carne que me restava e chuparem todas as laranjas de reserva, finalmente, lá para as cinco da tarde é que os avinhados inocentes resolveram retirar-se.  Ainda por azar o carro de Renato não pegou e todos tiveram que empurrá-lo.
Minha mulher passou a antipatizar Saturnino. Entretanto, com o correr do tempo, as suas visitas constantes, os confeitos e as lembrancinhas que ele trazia para os meus filhos, minha esposa já o adorava e passou a das suas palestras, suas anedotas de bom gosto, o que se repetia sempre aos domingos. Anos depois contei tudo isso ao velho Saturnino, repetindo-o diante de minha esposa; ele “bolava” de rir. Assim eram os Inocentes.
E minha mulher, a dona Gizelda, assimilou o espírito do Clube e familiarizou-se também com a sua filosofia: - Inocentes das maldades alheias. Como o tempo voa e a vida encurta!
A Última Noite com Cascudo
Ora, a última noite! Sempre faz sentido a primeira noite. Bem, mas isso é quando se perde a inocência... Purus gramaticus, Purus asinus – grande gramático, asno perfeito, lê-se nesse aforismo latino. Sejamos Purus sem retórica. Inilla nocte dixit Cascudos inocentibus nobis: Venit hora, et nunc est. Chegou a hora da recreação, aquilo que os ingleses chamam de refreshment e os americanos entendem por happy hour. É claro que esses rasgos de latinidade ou esses arrufos de anglicanismo partiam de mim.
E realmente chegou o momento agradável, naquela inesquecível noite, para a reafirmação de nossos votos de inocência. Cascudo trouxe as medalhas, espalhou-as sobre a mesa e logo em seguida nos condecorou. Colocando a comenda do Vaticano no pescoço de Diógenes da Cunha Lima fez a seguinte observação: rei de todos os Vassalos; Vassalo de todos os reis. Rei-Vassalo, como já o disse, era a senha do Clube. Os folguedos continuaram, in illa nocte.
As comendas foram distribuídas criteriosamente e cada um dé nós elevou-se ao grau de comendador momentâneo, uma honraria tão efêmera e tão fugaz, como fugaz é a noite. Por coincidência do momento, naquela semana o Papa Paulo VI visitava a Palestina e a energia de Paulo Afonso chegava a Macaíba iluminando ruas e becos. Enquanto Sua Santidade era recebido pelo rei da Jordânia, sua majestade, o Quilowatt, era festejado no berço de Auta de Souza. Duas extraordinárias expressões de progresso, lembrou o presidente Gouveia: o progresso espiritual e a luz que ilumina todo homem que nasce nesse mundo. Houve risos, palmas e aplausos.
Como era paulista e bairrista, Renato elogiou Santos e fez pouco caso de Santos Reis, o bairro humilde de minha residência. Por fim, ligou a Via Anchieta a Via Sacra porque considerava são Paulo superior ao Vaticano.
Na euforia desse entertainment, dir-se-ia que nós estivéssemos na Via Láctea a identificar estrelas. Saturnino, homem inteligente e bom, além da bondade, sempre muito bem humorado, andava com os bolsos cheios de amuletos sugestivos para distribuí-los com os amigos no momento azado, segundo as previsões do horóscopo. Então, o grande mestre, vermelho e conde corado com o mérito de Tamandaré, aproveitou um intervalo para agraciar os Inocentes com a Orelha do Almirante, uma redoma áurea, bem fornida, com a sigla CIAT nela gravada. CIAT era a escola da marinha onde ele ensinava português. Às vezes, trazia na algibeira um canivete miraculoso provido de 7 lâminas, munido de saca-rolha, abridor de cerveja e outros dispositivos para abrir a lata de sardinha que servia de tira-gosto. Eram as sete maravilhas do bolso, repetia ele, pilheriando. No momento, Saturnino distribuiu o canivete e a redoma aos presentes. Como amuleto, nos livrava dos 7 pecados capitais. Professor Saturnino sempre foi um dos melhores e mais divertidos figurantes do nosso Clube. Sem ele e sem Cascudo, o Clube perdia sua natural e original animação. In illa nocte vivemos momentos agradabilíssimos. Demos uma prega no tempo, bem ao gosto de José Saturnino. Cerzimos a casa da amizade, restabelecendo, na linha imaginária, a confiança perdida, segundo as insinuações de Ascendino Almeida e Severino Nunes. Ascendino era dentista e estava sempre extraindo do tempo às raízes do passado. Severino Nunes, como bom protético, costumava mostrar os alvéolos a Ascendino para lhe lembrar “onde as Raízes estão engastadas”. Gostava de repetir uma frase minha: - deixai vir a mim os banguelinhos – título de um artigo que lhe dediquei no Jornal A Ordem.
A tertúlia se prolongava na euforia do milagroso e espirituoso S.Juilão. Requintamos o estilo Tertuliano enriquecido pelo expletivo da camaradagem mas sem nos preocuparmos de fazer ablativo de viagem, na concepção vernacular de Arnaldo Arsênio de Azevedo e Eulício Farias, ambos excelentes professores da língua pátria. Diógenes, como bom advogado, aludiu às cláusulas contratuais, numa linguagem figurativa que expressava tropologicamente o nosso compromisso moral para que não perdêssemos a Inocência.
E foi esse grupo mencionado, inteligente pela própria natureza, que participou dessa inesquecível reunião. Cascudo, dias depois, concedia entrevista a revista Manchete e, vagamente, referiu-se ao clube dos Inocentes, considerando-o, talvez, uma bela página do folclore. Bem que o grande folclorista amigo poderia ter fornecido ao Pedro Bloch uma reportagem bem mais sólida, nunca ter comparado os Inocentes de sua predileção a um “grupo de assaltantes peraltas”, o que dava a entender que éramos um bando de rapazinhos itinerantes em noite de Halloween estadunidense.
Os Inocentes não atacam, vivem. Embora o nosso ritual simbólico permita associar o culto de S. Julião a liturgia de Grambrinus, isso não significa que sejamos peraltas ou teólogos. Há mais sabedoria entre os Inocentes do que mesmo pode imaginar a tua vã filosofia, se é que leste alguma página de Shakespeare. E a noite corria até que veio a fresca madrugada e logo as albores da manhã. Noctuavolat era como os atenienses se referiam a coruja, porque essa ave consagrada a Minerva era de bom agouro. Para nós, esse presságio era sombrio e tem afetado muito o magistério: realmente, não pode ser bem sucedida uma classe que tem uma coruja como símbolo. Para os Inocentes, nessas ocasiões festivas, em que aparecia a aurora, o que encantava mesmo era o canto dos outros pássaros. E o que resta de tudo isso: uma saudade do que aconteceu! Uma recordação nostálgica dos que morreram, a venit hora et nunc est. Ah! Se todas outras agremiações ou sodalícios pudessem se comportar pela filosofia no nosso Clube: inocentes das maldades alheias... E nunca mais aquela noite se repetiu. Nulla nox est.
Um Pouco da Formação dos Clubs
A palavra club, no sentido de associação, nos veio do inglês. Mesmo naquele idioma, sua origem etimológica é duvidosa. No inglês medieval, usava-se o verbo to club com ideia de aglomerar, amontoar, reunir. Talvez venha daí o sentido de reunião ou aglomerado humano. Na França, club teve, inicialmente, duas aplicações: política e amistosa – Le Club dês Jacobins, Le Club Littéraire ou un associacition d’amis. Os franceses, que nos emprestaram o galicismo e sempre se opuseram a invasão de termos estrangeiros em seu idioma, não se livraram desse anglicismo associativo.
Em língua inglesa, por ironia linguística, a primeira vez que se menciona a formação do club é num poema de Thomas Hoccleve intitulado La Male Régle (1406). Na parte em que o poeta se refere ao club, inicia a narrativa com outra introdução em francês: Court de Bone Companie. Hoccleve considerava-se aluno de Chaucer e adorava altografa os seus poemas tanto em francês quanto em latim. Uma de suas mais longas e enfadonhas produções românticas recai sobre The Regimento f Princes ou De Regimine Pricipum, uma introdução que também não era lá muito original. De qualquer modo, Hoccleve, em La Male Régle, demonstra bom conhecimento da sociedade londrina do seu tempo.
Este primeiro club descrito no poema de Heccleve floresceu no reinado de Henrique IV, espécie de club dos glutões, que só reuniam para saborear um bom jantar. Essas associações londrinas iniciais estavam sempre ligadas a pratos, copos e garrafas. O Bread Street Club reunia-se as sextas-feiras na Taberna da Sereia, um famoso botequim no centro de Londres. Em 1616, ano da morte de Shakespeare. O poeta e dramaturgo Ben Jonson fundou o Club Apollo, cujo primeiro encontro ocorreu na Taberna do Diabo, ao lado do Bar do Templo – Templer Bar.
Jonson é conhecido pelo seu temperamento irrequieto ou irônico e pelas sátiras levantadas a sociedade londrina. Somente no meado do século XVII é que o club, na Inglaterra, chegou ao seu apogeu e a associação confrontouse com a sadalitas dos romanos: camaradagem, confraria, círculo de reuniões ou sodalício.
Por este tempo, a palavra tinha esta grafia – clubbe. John Aubrey, o grande antiquário e também amante de epígrafes em latim, depois de escrever o seu Athenae Oxonienses ou Vidas de Homens Eminentes, a maneira de Plutarco, assim discorre: “we use the Word clubbe for sodality in a tavern”. Esta solidariedade do bar também foi esposada por Samuel Pepys que se refere a Taberna dos Bosques – Woods’Tavern, instalada na rua Pall  Mall, onde ele e seus amigos frequentavam “for clubbing”.
E assim, em Londres, desenvolveu-se o club. Entretanto, ao que me parece, no final do século XIX, esses clubs ingleses gozavam de pouca ou nenhuma reputação.
O romancionista irlandês, George Moore (1852-1933), na sua autobiografia – The confession of a young Man – escreve lá pela altura do cap. 9 “nenhum lugar da Inglaterra, aonde alguém possa ir, considera-se respeitável. Esta é a gênesis do club fora da respeitabilidade doméstica.” Não deixa de haver aí humor nostálgico e irreverente muitos aos gostos de irlandeses e escoceses desde o jovem poeta e camponês John Burns até o mais recente e calculado Bernard Shaw. Em literatura inglesa, eles sempre foram os mestres da sátira. É uma potencialidade literária característica dos nórdicos. Prevalece a sinceridade mordaz mas sem grandes ofensas.
Deixemos de lado a gênesis do club inglês e sigamos ligeiramente o curto êxodo de nossos Inocentes. O clube dos Inocentes, em sua formação, aglomeração e atuação. Jamais se baseou por essas diretrizes anglos-saxônicas e nunca levou em consideração essas avaliações ou essas nebulosas tradições. Creio mesmo que do mais rude ao mais culto, todos ignoravam esse passado tabernesco predominante na sociedade londrina. Nem eu mesmo me preocupei com o assunto.
Nossas tertúlias eram carentes de alegria e não de alquemia. De que nos valeriam tais segredos históricos ou tais revelações extemporâneas? Já nos bastava a insinuação daquela carta apócrifa atribuída a Aristóteles – secreta secretorum – um tedioso sermão sobre vícios e virtudes de que se utilizou Hoccleve no seu tratado sobre De Regimine Principum. Nós sempre detestamos as imitações e, por isso, o Clube dos Inocentes manteve-se independentemente original. Nosso clube não teve vícios, nem segredos e só conservou as virtudes naturais (inatas) que enriquecem as almas dos simples.
Ignorantemente, nos aproximamos mais dos franceses do que mesmo dos ingleses: um association de vrais amis.
Sempre nos distanciamos de teólogos e filósofos.
O Princípio de Tolerância
Como já insinuei, os membros do nosso Clube seguiam religiões diversas, cada um acomodado a sua própria crença. Dois eram católicos praticas. Dois outros eram espíritas Kadercistas. O espiritismo não exige práticas, pois a metempsicose é um estado da alma em transmigrações corpóreas: uma alma em trãnsito, espécie de condomínio espiritual. Tudo se materializa no transitório inquilinato. A essa consolação ensinava Plotino que era simples metensomatose – transformação de um corpo noutro.
Ora, Saturnino e Feliciano simpatizavam com as práticas esotéricas e por isso se identificavam com os Rosa-Cruzes. Procuravam a pedra filosofal pela química da idade Média. Na prática: sonhavam com a alquimia como quem sonha com tesouro perdido ou encantado. O resto, cabalístico ou teológico.
Se os anjos tem ou não tem sexo, isso ficava por conta da destruição de Sodoma e a critério de Lot. Sabe-se, pela leitura da Bíblia, que foram grandes as dificuldades enfrentadas pelo sobrinho de Abraão por causa de dois deles, exatamente pela dibiedade de sexos. Vamos deixar essa androgenia a indagação científica. Essas ambivalências nunca nos preocuparam.
Conservamos sempre o princípio da tolerância, o respeito as convicções alheias e o direito de pensar livre e conscientemente. Cascudo, por exemplo, mesmo sendo mestre-maçon, foi indulgenciado com alta comenda do Vaticano. “Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos”, segundo nos lembra a linguagem do salmista. No fundo, uma você, uno ore, todos nós acreditávamos no Deus dos Exércitos, mesmo porque, ainda hoje, de Jeremias a São Paulo, são os generais que contemplam as estrelas, mesmo que encolham os ombros.
Uma noite, lembro-me bem, entre “dois dedos de prosa”, inter pocula, reunidos Cascudo, Saturnino e eu, com a presença do presidente Gouveia, arrisquei-me a esse arbítrio: - Se queres aproximar-te de Deus, afasta-te de filósofos e teólogos. Observação de Cascudo: Satu... que padre a Igreja perdeu... emendou Saturnino: nós é que lucramos... e levantou um brinde ao passado. A esse modelo de festim chamavam os romanos orationem recitare inter pocula – discursar no ato de beber. Nessa retórica de botequim, o brasileiro é pródigo.
Majestati Naturae Par Ingenium
Assim foi o Clube dos Inocentes, aquela agremiação desprovida de maldade, a qual amoldou-se aquela satisfação tranquila a que Demócrito chamou de eutimia. Viveu os seus momentos de agradável euforia num ambiente aprazivelmente lúdico. Ludere, non laedere – Brincar, sem ofender. Sodalitas hodie nulla est – já não existe mais a encantadora gremiação, a não ser na memória dos seus sobreviventes. Já tivemos vários Clubs, em Natal, sendo o primeiro, ao que me parece, aquele chamado Velo Club Natalense fundado em 1899 e extinto no ano seguinte. Era um Club recreativo e se ocupava principalmente de corridas de bicicleta. Velo aí não é a lã das ovelhas, mas o primeiro impulso, a velo... cidade lenta. Compreende-se que o veículo inventado e pedalado pelo escocês Kirkpatrick Macmillan, em 1839, chegara, aqui em Natal, 60 anos depois para entra no Velo Club. Não deixa de ser um fato histórico.
O Clube dos Inocentes prevalecerá, também, como um desses fatos históricos igual a tantos outros esquecidos e só relembrados no confronto das páginas amarelas da própria história. Historia quoquo modo script delectat – a história seja qual o método pelo qual for escrita, sempre agrada – repetia Plínio, o Moço. A guisa de ilustração e conclusão, relembrarei alguns desses fatos registrados nos anais de nossas história citadina, acontecimentos esquecidos e tão importantes quanto a permanência do club dos Inocentes. Vejamo-los.
1-    Quem se recorda mais da primeira visita pastoral feita a Natal pelo bispo de Olinda, dom José Pereira da Silva Barros, conde de Santo Agostinho, dia 08 de agosto de 1882?
2-    A visita de engenheiro hidráulico, o inglês Jonh Hawshaw, mandado pelo Imperador, em setembro de 1827, com a incumbência de inspecionar a barra do Potengi. A inspeção de nada valeu, pois, em 1901, vindo o coronel e cônsul americano P. Pryne em visita oficial a nossa cidade, o navio em que viajava, o Atlanta, não pode deslizar pelas águas mansas do estuário porque a barra não lhe oferecia condições de calado. Sua Excia. Obrigou-se a embarcar e desembarcar numa lancha de pequena sabotagem.
3-    Quem se recorda daquele avião da Latécoere que aterrisou na praia da Redinha entre pânico, espanto e admiração dos pescadores? Dia 18 de Julho de 1927. Nesse mesmo ano, pousava, normalmente, em Parnamirim, sem grande espanto, o primeiro avião – o Briguet-1685. Procedente do Senegal.
4-    Em 1911, foi inaugurado o serviço de bondes elétricos, que tanto e tão bons serviços prestaram aos transportes de nossa querida cidade. Antes (1908) já havia os bondes puxados a burros. Esses burros-transportes foram os primeiros animais a circular pelas ruas de Natal prestando seus serviços a população, precursores dos cavalos a vapor.
5-    E por último, lembrarei o casamento do século. No dia 09 de julho 1890, celebrou-se, aqui em Natal, o  primeiro casamento civil, oficiante: o Juiz Ferreira Chaves. Nubentes: Philipe Pereira do Lago e Marianna Shimphorosa de Castro Barbosa. Testemunhas: Dr. Joaquim Manoel da Silva Júnior, então governador do Estado, e João Avelino Pereira de Vasconcelos. Lago e Shimphorosa foram recepcionados por Silva Júnior.

Factum est illud; fieri non potest(Plauto), et facta potenciora sunt verbis (afor.jurid.) o fato é este e não se pode evitar que seja (pois) os fatos tem mais força que as palavras.
Nossos sentimentos eram nobres e bem acomodados às circunstâncias do tempo. Evitávamos qualquer pedantismo literário ou exibição de comprometida erudição ou bizantismo. Tanto nos afastamos do Vale de Ouro, o carneiro da fábula, o qual possuía a faculdade de falar, quanto nos distanciamos do pedalado Velo Club.                                                                      

Nossa recreação era bem outra, longe do helenismo heroico de Jasão, o argonauta que envenenou o dragão e conquistou o Velo. Tampouco levamos em consideração a pedalagem do escocês Macmillan, inventor da bicicleta, que rodou o Velo Club Natalense, naquele ano de 1899. Nosso vellus era bem outro; a recreação descontraída, sem preucupação com a velocidade do tempo. Nada de heróis e deuses; e muito menos de inventores.

Sem grande esforço de memória ou profundas reflexões filosóficas, nos adptamos tacitamente ao conselho de Marco Aurélio, em suas Meditações, a de vivermos cada minuto da vida como se fora o último. Era o que constantemente nos lembrava Saturnino. Venit hora, et nunc est. E se predominou alguma filosofia em nosso Inocente Club, essa veio indiretamente pela via aforística, a sabedoria popular, sem implicação de abusivas premissas. Vale lembrar a observação de Pe. Júlio Maria: todo filósofo tem a sua ignorância e todo ingnorante tem a sua filosofia. Que queres mais?

Documentando aqueles citadinos fatos, no que retro ficou dito, o historiador e Inocente Câmara Cascudo usou a expressão latina – De rebus pluribus – sobre muitas coisas. Por ter sido Luiz da Câmara Cascudo uma das vigas mestras do clube dos Inocentes, incluo in rebus pluribus a nossa sodalitas innocentium, Inocente agremiação a que ele pertenceu e tanto amou ao lado do seu grande amigo e admirador, José Saturnino, e ao lado de todos nós.

Sodalitas innocentium in facto nulla est, sed vere in historia manebit.

Realmente, o sodalício hoje ja não existe, mas permanecerá ligado a histórica lúdica da Cidade de Natal, muito ao gosto de Cascudo. Registrei, nesse livro, seu nascimento, desenvolvimento e declínio.

Nesse desfecho se enfeixa a frase que Suetônio atribui a Augusto, preferida no seu leito de morte: acta est fabula – esta representada a peça. Era assim que terminava o último ato, no teatro romano. Pois assim, também, in illa nocte, caiu o pano da última cena de nosso inocente convívio, na casa do historiador e grande mestre, Luiz da Câmara Cascudo.

Concluindo, pois, esses confrontos passageiros, dentro dessas circustancias históricas, ou mesmo circustâncias temporais, lembro o verso de Ovídio – tempus edax, homo edacior – o tempo é destruidor, mas o homem é ainda mais destruidor. Complementou esse verso a vibrante retórica de Cícero: tempori serviendum est – é preciso que nos acomodemos ao tempo. Sic transit innocentia nostra – e assim passou a nossa inocência, nossa inofensiva agremiação de grandes valores humanos.

Desse modo, como escreveu Lucrécio, ocultam-se os segredos da vida – vitae postcenia celant. E aquela incrição latina aberta numa estátua de Buffon com a ideia de mensurar o gênio e a grandeza do naturalista francês, eu aqui a transfiro com a mesma igualdade para os nossos inocentes falecidos: majestati naturae par ingenium – o Gênio é igual a magestade da natureza.

Et nulla illa nox est.

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Extraído e revisado da 1ª Edição de "Saturnino, Cascudo e o CLUBE DOS INOCENTES". Porto Alegre -  RS - 1992, de José Melquíades de Macedo.

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