Saturnino,
Renato e Cascudo
Lá pelos
meados de 1953, quando eu contava 6 meses de casado, num belo domingo
ensolarado, chegam lá na minha casa, Saturnino, Renato Gouveia e Câmara
Cascudo. Morava no mesmo local, onde ainda moro, numa casa que mandei derrubar
e sobre seus escombros levantei uma outra: minha residência de hoje. O bairro
não se chamava Santo Reis, a região era deserta, cheia de morros e dunas,
conhecida por Montagem ou Praia da Limpa. Havia luz, mas não existia água encanada. Seus poucos habitantes
obrigavam-se a recorrer a chafariz ou servi-se da água salobra dos reservatórios
do porto, destinados a lastro dos navios. Bem, isso não vem muito ao caso;
serve apenas de ilustração ao fato. Lá me aparecem Saturnino e Cascudo num
velho carro Ford dirigido por Renato do banco. Renato já se tinha confirmado na
presidência do Clube dos Inocentes e essa ingênuas criaturas resolveram
fazer-me uma visita domingueira
Saturnino soltou so carro, todo de branco, paletó e gravata, sobrecarregado com
uns pacotes que, desembrulhado, resultaram em um “tira-gosto” para bebidas.
Cascudo também de paletó e gravata trazia, bem agarrado pela aselha, um botijão
do famoso e milagroso vinho S.Julião. Renato, o único em traje esporte, apesar
de paulista, conduzia umas garrafas de cerveja. Os três bem ou mal
intencionados, entraram de casa a dentro sorridentes e pilheriantes:
- Os
Inocentes atacam de manhãzinha, disse Saturnino, enquanto Cascudo acendia o
enorme charuto de sua preferência – o Danemann. Cada um repetiu a senha do
clube: Rei-Vassalo. Quem não gostou da brincadeira foi minha mulher que tinha
horror a “cachaceiros”, conforme classificou o trio inocente. Sentaram-se os
três bem aboletados, ao gosto de Saturnino, e os deixei a vontade, enquanto
confabulava com minha esposa, a qual, a esta altura, estava possessa de raiva e
antipatia pelos ilustres visitantes.
Minha
esposa, até então, jamais vira Renato Gouveia e desconhecia Câmara Cascudo. Por
outro lado, Cascudo, na época, além de sua grande contribuição a História do
Rio Grande Do Norte e seus estudos de Folclore, fora de casa, começava a
projeta a sua “enorme sombra” no Canto
de Muro, ele mesmo brincando com aquela bicharada toda que se movimenta no
romance. Os originais desse livro foram enviados ao mestre Sartunino e lá, no
seu Curso 91. Onde eu lecionava latin. Mas isso é assunto para a biografia do Professor
Saturnino.
Minha mulher
ignorava todos esses pormenores literários e não estava interessada em fama de
ninguém. Bastava já a incipiente “fama” de seu jovem marido – “a de se
acompanhar com esses cachaceiros”. Portanto, os três não passavam de importunos
e inoportunos.
Ela os
considerava intrusos. Não houve, nesse mundo, quem a convencesse de que eles
eram inocentes. Para ela eles eram realmente instrujões. E quem ficou no canto
do muro fui eu. Pacientemente voltei ao encontro do grupo. Saturnino tirava o
paletó e Cascudo mastigava o charuto já pela metade.
- Vamos
começar os trabalhos, gritou Renato com seu sotaque paulista. Abriu-se o vinho,
arrumei as taças na mesa, Cascudo “debulhou” um peixe a haja “água” a escorrer
pela garganta. Em pouco tempo secou um dos botijões de vinho. Mas eles traziam
outro de reserva, o espirituoso patrono do Clube, o já conhecido São Julião.
Acabou-se o tira-gosto. Pedi a minha mulher para preparar carne, o que ela fez
muito a contra-gosto, porque não perdoava os bebedores. A manhã se esgotou no
calor do vinho. Na cozinha, um pouco distanciada, minha mulher, tristemente se
maldizia e praguejava contra mim e os inocentes. Saturnino ouviu, por acaso,
alguns lamentos e me perguntou o que se passava. Respondi que ela estava muito
satisfeita com a nobre visita. Saturnino chamou-a, pediu umas laranjas e lhe
disse:
- Minha
senhora, estou muito alegre pela sua compreensão. A senhora deve orgulhar-se
muito do seu marido, mas deve se orgulhar mais ainda de ter recebido, em sua
casa, a visita do maior historiador do Rio Grande do Norte, o Dr. Luiz da
Câmara Cascudo. Luiz pegarreou engrandecido e virou o copo. Minha esposa riu-se
com aquele riso sardônico que demonstra desdém; furor arma ministrat; e isso
porque não podia mordê-lo na venta. E travou-se o maior dilema na minha vida de
casado, até hoje. É que minha mulher me chamava lá dentro e, enraivecida,
inconformada, esbravejando, repetia-me usando as suas armas a maneira de
Vírgilio:
- Eu vu me
orgulhar desses cachaceiros safados, que além de atrapalharem o nosso domingo,
ainda exigem que lhe faça comida! Saturnino percebeu em alguns momentos o
resmungo, mas já bem animado pelos favores de S.Julião, não penetrava no
diálogo e me perguntava:
- A senhora
está mesmo satisfeita?
-
Satisfeitíssima e, sobretudo, orgulhosa de ter, em nossa casa, o maior
historiador do século, respondia-lhe eu. Mas o drama continuava. Eu entrava e
saía, entre a dor e o riso simulado. Furor arma ministrat – é assim que
Vírgilio descreve, no I Liv. da Eneida, a rebelião de uma cidade onde as pedras
eram jogadas de todos os lados. Iracunda, minha mulher atacou, sem pedradas,
apenas por um lado sponte sua:
- Quando é
que esses três porcos imundos vão sair de nossa casa? Será que vão ficar pra
dormir, também! Era só o que faltava! Agredia-me minha querida esposa.
E Saturnino
chamava-a educadamente e lhe observava: noto que a senhora está muito
satisfeita: no futuro vai orgulhar-se de nos ter recebido; não por mim, mas
pelo mestre Cascudo. Não esqueça. De fato, não esqueceu; nem eu.
Depois de
comerem toda a carne que me restava e chuparem todas as laranjas de reserva,
finalmente, lá para as cinco da tarde é que os avinhados inocentes resolveram
retirar-se. Ainda por azar o carro de
Renato não pegou e todos tiveram que empurrá-lo.
Minha mulher
passou a antipatizar Saturnino. Entretanto, com o correr do tempo, as suas
visitas constantes, os confeitos e as lembrancinhas que ele trazia para os meus
filhos, minha esposa já o adorava e passou a das suas palestras, suas anedotas
de bom gosto, o que se repetia sempre aos domingos. Anos depois contei tudo
isso ao velho Saturnino, repetindo-o diante de minha esposa; ele “bolava” de
rir. Assim eram os Inocentes.
E minha
mulher, a dona Gizelda, assimilou o espírito do Clube e familiarizou-se também
com a sua filosofia: - Inocentes das maldades alheias. Como o tempo voa e a
vida encurta!
A Última
Noite com Cascudo
Ora, a
última noite! Sempre faz sentido a primeira noite. Bem, mas isso é quando se
perde a inocência... Purus gramaticus, Purus asinus – grande gramático, asno
perfeito, lê-se nesse aforismo latino. Sejamos Purus sem retórica. Inilla nocte
dixit Cascudos inocentibus nobis: Venit hora, et nunc est. Chegou a hora da
recreação, aquilo que os ingleses chamam de refreshment e os americanos entendem
por happy hour. É claro que esses rasgos de latinidade ou esses arrufos de
anglicanismo partiam de mim.
E realmente
chegou o momento agradável, naquela inesquecível noite, para a reafirmação de
nossos votos de inocência. Cascudo trouxe as medalhas, espalhou-as sobre a mesa
e logo em seguida nos condecorou. Colocando a comenda do Vaticano no pescoço de
Diógenes da Cunha Lima fez a seguinte observação: rei de todos os Vassalos;
Vassalo de todos os reis. Rei-Vassalo, como já o disse, era a senha do Clube.
Os folguedos continuaram, in illa nocte.
As comendas
foram distribuídas criteriosamente e cada um dé nós elevou-se ao grau de
comendador momentâneo, uma honraria tão efêmera e tão fugaz, como fugaz é a
noite. Por coincidência do momento, naquela semana o Papa Paulo VI visitava a
Palestina e a energia de Paulo Afonso chegava a Macaíba iluminando ruas e
becos. Enquanto Sua Santidade era recebido pelo rei da Jordânia, sua majestade,
o Quilowatt, era festejado no berço de Auta de Souza. Duas extraordinárias expressões
de progresso, lembrou o presidente Gouveia: o progresso espiritual e a luz que
ilumina todo homem que nasce nesse mundo. Houve risos, palmas e aplausos.
Como era
paulista e bairrista, Renato elogiou Santos e fez pouco caso de Santos Reis, o
bairro humilde de minha residência. Por fim, ligou a Via Anchieta a Via Sacra
porque considerava são Paulo superior ao Vaticano.
Na euforia
desse entertainment, dir-se-ia que nós estivéssemos na Via Láctea a identificar
estrelas. Saturnino, homem inteligente e bom, além da bondade, sempre muito bem
humorado, andava com os bolsos cheios de amuletos sugestivos para distribuí-los
com os amigos no momento azado, segundo as previsões do horóscopo. Então, o
grande mestre, vermelho e conde corado com o mérito de Tamandaré, aproveitou um
intervalo para agraciar os Inocentes com a Orelha do Almirante, uma redoma
áurea, bem fornida, com a sigla CIAT nela gravada. CIAT era a escola da marinha
onde ele ensinava português. Às vezes, trazia na algibeira um canivete
miraculoso provido de 7 lâminas, munido de saca-rolha, abridor de cerveja e
outros dispositivos para abrir a lata de sardinha que servia de tira-gosto.
Eram as sete maravilhas do bolso, repetia ele, pilheriando. No momento,
Saturnino distribuiu o canivete e a redoma aos presentes. Como amuleto, nos
livrava dos 7 pecados capitais. Professor Saturnino sempre foi um dos melhores
e mais divertidos figurantes do nosso Clube. Sem ele e sem Cascudo, o Clube
perdia sua natural e original animação. In illa nocte vivemos momentos
agradabilíssimos. Demos uma prega no tempo, bem ao gosto de José Saturnino.
Cerzimos a casa da amizade, restabelecendo, na linha imaginária, a confiança
perdida, segundo as insinuações de Ascendino Almeida e Severino Nunes.
Ascendino era dentista e estava sempre extraindo do tempo às raízes do passado.
Severino Nunes, como bom protético, costumava mostrar os alvéolos a Ascendino
para lhe lembrar “onde as Raízes estão engastadas”. Gostava de repetir uma
frase minha: - deixai vir a mim os banguelinhos – título de um artigo que lhe
dediquei no Jornal A Ordem.
A tertúlia
se prolongava na euforia do milagroso e espirituoso S.Juilão. Requintamos o
estilo Tertuliano enriquecido pelo expletivo da camaradagem mas sem nos
preocuparmos de fazer ablativo de viagem, na concepção vernacular de Arnaldo
Arsênio de Azevedo e Eulício Farias, ambos excelentes professores da língua
pátria. Diógenes, como bom advogado, aludiu às cláusulas contratuais, numa
linguagem figurativa que expressava tropologicamente o nosso compromisso moral
para que não perdêssemos a Inocência.
E foi esse
grupo mencionado, inteligente pela própria natureza, que participou dessa
inesquecível reunião. Cascudo, dias depois, concedia entrevista a revista
Manchete e, vagamente, referiu-se ao clube dos Inocentes, considerando-o,
talvez, uma bela página do folclore. Bem que o grande folclorista amigo poderia
ter fornecido ao Pedro Bloch uma reportagem bem mais sólida, nunca ter
comparado os Inocentes de sua predileção a um “grupo de assaltantes peraltas”,
o que dava a entender que éramos um bando de rapazinhos itinerantes em noite de
Halloween estadunidense.
Os Inocentes
não atacam, vivem. Embora o nosso ritual simbólico permita associar o culto de
S. Julião a liturgia de Grambrinus, isso não significa que sejamos peraltas ou
teólogos. Há mais sabedoria entre os Inocentes do que mesmo pode imaginar a tua
vã filosofia, se é que leste alguma página de Shakespeare. E a noite corria até
que veio a fresca madrugada e logo as albores da manhã. Noctuavolat era como os
atenienses se referiam a coruja, porque essa ave consagrada a Minerva era de
bom agouro. Para nós, esse presságio era sombrio e tem afetado muito o
magistério: realmente, não pode ser bem sucedida uma classe que tem uma coruja
como símbolo. Para os Inocentes, nessas ocasiões festivas, em que aparecia a
aurora, o que encantava mesmo era o canto dos outros pássaros. E o que resta de
tudo isso: uma saudade do que aconteceu! Uma recordação nostálgica dos que
morreram, a venit hora et nunc est. Ah! Se todas outras agremiações ou
sodalícios pudessem se comportar pela filosofia no nosso Clube: inocentes das
maldades alheias... E nunca mais aquela noite se repetiu. Nulla nox est.
Um Pouco da
Formação dos Clubs
A palavra club, no sentido de associação, nos
veio do inglês. Mesmo naquele idioma, sua origem etimológica é duvidosa. No
inglês medieval, usava-se o verbo to club com ideia de aglomerar, amontoar,
reunir. Talvez venha daí o sentido de reunião ou aglomerado humano. Na França,
club teve, inicialmente, duas aplicações: política e amistosa – Le Club dês
Jacobins, Le Club Littéraire ou un associacition d’amis. Os franceses, que nos
emprestaram o galicismo e sempre se opuseram a invasão de termos estrangeiros
em seu idioma, não se livraram desse anglicismo associativo.
Em língua
inglesa, por ironia linguística, a primeira vez que se menciona a formação do
club é num poema de Thomas Hoccleve intitulado La Male Régle (1406). Na parte
em que o poeta se refere ao club, inicia a narrativa com outra introdução em
francês: Court de Bone Companie. Hoccleve considerava-se aluno de Chaucer e
adorava altografa os seus poemas tanto em francês quanto em latim. Uma de suas
mais longas e enfadonhas produções românticas recai sobre The Regimento f
Princes ou De Regimine Pricipum, uma introdução que também não era lá muito
original. De qualquer modo, Hoccleve, em La Male Régle, demonstra bom
conhecimento da sociedade londrina do seu tempo.
Este
primeiro club descrito no poema de Heccleve floresceu no reinado de Henrique
IV, espécie de club dos glutões, que só reuniam para saborear um bom jantar. Essas
associações londrinas iniciais estavam sempre ligadas a pratos, copos e
garrafas. O Bread Street Club reunia-se as sextas-feiras na Taberna da Sereia,
um famoso botequim no centro de Londres. Em 1616, ano da morte de Shakespeare. O
poeta e dramaturgo Ben Jonson fundou o Club Apollo, cujo primeiro encontro
ocorreu na Taberna do Diabo, ao lado do Bar do Templo – Templer Bar.
Jonson é
conhecido pelo seu temperamento irrequieto ou irônico e pelas sátiras
levantadas a sociedade londrina. Somente no meado do século XVII é que o club,
na Inglaterra, chegou ao seu apogeu e a associação confrontouse com a sadalitas
dos romanos: camaradagem, confraria, círculo de reuniões ou sodalício.
Por este
tempo, a palavra tinha esta grafia – clubbe. John Aubrey, o grande antiquário e
também amante de epígrafes em latim, depois de escrever o seu Athenae
Oxonienses ou Vidas de Homens Eminentes, a maneira de Plutarco, assim discorre:
“we use the Word clubbe for sodality in a tavern”. Esta solidariedade do bar
também foi esposada por Samuel Pepys que se refere a Taberna dos Bosques –
Woods’Tavern, instalada na rua Pall
Mall, onde ele e seus amigos frequentavam “for clubbing”.
E assim, em
Londres, desenvolveu-se o club. Entretanto, ao que me parece, no final do
século XIX, esses clubs ingleses gozavam de pouca ou nenhuma reputação.
O
romancionista irlandês, George Moore (1852-1933), na sua autobiografia – The
confession of a young Man – escreve lá pela altura do cap. 9 “nenhum lugar da
Inglaterra, aonde alguém possa ir, considera-se respeitável. Esta é a gênesis
do club fora da respeitabilidade doméstica.” Não deixa de haver aí humor
nostálgico e irreverente muitos aos gostos de irlandeses e escoceses desde o
jovem poeta e camponês John Burns até o mais recente e calculado Bernard Shaw.
Em literatura inglesa, eles sempre foram os mestres da sátira. É uma
potencialidade literária característica dos nórdicos. Prevalece a sinceridade
mordaz mas sem grandes ofensas.
Deixemos de
lado a gênesis do club inglês e sigamos ligeiramente o curto êxodo de nossos
Inocentes. O clube dos Inocentes, em sua formação, aglomeração e atuação.
Jamais se baseou por essas diretrizes anglos-saxônicas e nunca levou em
consideração essas avaliações ou essas nebulosas tradições. Creio mesmo que do
mais rude ao mais culto, todos ignoravam esse passado tabernesco predominante
na sociedade londrina. Nem eu mesmo me preocupei com o assunto.
Nossas
tertúlias eram carentes de alegria e não de alquemia. De que nos valeriam tais
segredos históricos ou tais revelações extemporâneas? Já nos bastava a
insinuação daquela carta apócrifa atribuída a Aristóteles – secreta secretorum
– um tedioso sermão sobre vícios e virtudes de que se utilizou Hoccleve no seu
tratado sobre De Regimine Principum. Nós sempre detestamos as imitações e, por
isso, o Clube dos Inocentes manteve-se independentemente original. Nosso clube
não teve vícios, nem segredos e só conservou as virtudes naturais (inatas) que
enriquecem as almas dos simples.
Ignorantemente,
nos aproximamos mais dos franceses do que mesmo dos ingleses: um association de
vrais amis.
Sempre nos
distanciamos de teólogos e filósofos.
O Princípio
de Tolerância
Como já
insinuei, os membros do nosso Clube seguiam religiões diversas, cada um
acomodado a sua própria crença. Dois eram católicos praticas. Dois outros eram
espíritas Kadercistas. O espiritismo não exige práticas, pois a metempsicose é
um estado da alma em transmigrações corpóreas: uma alma em trãnsito, espécie de
condomínio espiritual. Tudo se materializa no transitório inquilinato. A essa
consolação ensinava Plotino que era simples metensomatose – transformação de um
corpo noutro.
Ora,
Saturnino e Feliciano simpatizavam com as práticas esotéricas e por isso se identificavam
com os Rosa-Cruzes. Procuravam a pedra filosofal pela química da idade Média.
Na prática: sonhavam com a alquimia como quem sonha com tesouro perdido ou
encantado. O resto, cabalístico ou teológico.
Se os anjos
tem ou não tem sexo, isso ficava por conta da destruição de Sodoma e a critério
de Lot. Sabe-se, pela leitura da Bíblia, que foram grandes as dificuldades
enfrentadas pelo sobrinho de Abraão por causa de dois deles, exatamente pela
dibiedade de sexos. Vamos deixar essa androgenia a indagação científica. Essas
ambivalências nunca nos preocuparam.
Conservamos
sempre o princípio da tolerância, o respeito as convicções alheias e o direito
de pensar livre e conscientemente. Cascudo, por exemplo, mesmo sendo
mestre-maçon, foi indulgenciado com alta comenda do Vaticano. “Como é bom e
agradável viverem unidos os irmãos”, segundo nos lembra a linguagem do
salmista. No fundo, uma você, uno ore, todos nós acreditávamos no Deus dos
Exércitos, mesmo porque, ainda hoje, de Jeremias a São Paulo, são os generais
que contemplam as estrelas, mesmo que encolham os ombros.
Uma noite,
lembro-me bem, entre “dois dedos de prosa”, inter pocula, reunidos Cascudo,
Saturnino e eu, com a presença do presidente Gouveia, arrisquei-me a esse
arbítrio: - Se queres aproximar-te de Deus, afasta-te de filósofos e teólogos.
Observação de Cascudo: Satu... que padre a Igreja perdeu... emendou Saturnino:
nós é que lucramos... e levantou um brinde ao passado. A esse modelo de festim
chamavam os romanos orationem recitare inter pocula – discursar no ato de
beber. Nessa retórica de botequim, o brasileiro é pródigo.
Majestati
Naturae Par Ingenium
Assim foi o
Clube dos Inocentes, aquela agremiação desprovida de maldade, a qual amoldou-se
aquela satisfação tranquila a que Demócrito chamou de eutimia. Viveu os seus
momentos de agradável euforia num ambiente aprazivelmente lúdico. Ludere, non
laedere – Brincar, sem ofender. Sodalitas hodie nulla est – já não existe mais
a encantadora gremiação, a não ser na memória dos seus sobreviventes. Já
tivemos vários Clubs, em Natal, sendo o primeiro, ao que me parece, aquele
chamado Velo Club Natalense fundado em 1899 e extinto no ano seguinte. Era um Club
recreativo e se ocupava principalmente de corridas de bicicleta. Velo aí não é
a lã das ovelhas, mas o primeiro impulso, a velo... cidade lenta. Compreende-se
que o veículo inventado e pedalado pelo escocês Kirkpatrick Macmillan, em 1839,
chegara, aqui em Natal, 60 anos depois para entra no Velo Club. Não deixa de
ser um fato histórico.
O Clube dos
Inocentes prevalecerá, também, como um desses fatos históricos igual a tantos
outros esquecidos e só relembrados no confronto das páginas amarelas da própria
história. Historia quoquo modo script delectat – a história seja qual o método
pelo qual for escrita, sempre agrada – repetia Plínio, o Moço. A guisa de
ilustração e conclusão, relembrarei alguns desses fatos registrados nos anais
de nossas história citadina, acontecimentos esquecidos e tão importantes quanto
a permanência do club dos Inocentes. Vejamo-los.
1- Quem se recorda mais da primeira
visita pastoral feita a Natal pelo bispo de Olinda, dom José Pereira da Silva
Barros, conde de Santo Agostinho, dia 08 de agosto de 1882?
2- A visita de engenheiro hidráulico, o
inglês Jonh Hawshaw, mandado pelo Imperador, em setembro de 1827, com a
incumbência de inspecionar a barra do Potengi. A inspeção de nada valeu, pois,
em 1901, vindo o coronel e cônsul americano P. Pryne em visita oficial a nossa
cidade, o navio em que viajava, o Atlanta, não pode deslizar pelas águas mansas
do estuário porque a barra não lhe oferecia condições de calado. Sua Excia.
Obrigou-se a embarcar e desembarcar numa lancha de pequena sabotagem.
3- Quem se recorda daquele avião da
Latécoere que aterrisou na praia da Redinha entre pânico, espanto e admiração
dos pescadores? Dia 18 de Julho de 1927. Nesse mesmo ano, pousava, normalmente,
em Parnamirim, sem grande espanto, o primeiro avião – o Briguet-1685.
Procedente do Senegal.
4- Em 1911, foi inaugurado o serviço de
bondes elétricos, que tanto e tão bons serviços prestaram aos transportes de
nossa querida cidade. Antes (1908) já havia os bondes puxados a burros. Esses
burros-transportes foram os primeiros animais a circular pelas ruas de Natal
prestando seus serviços a população, precursores dos cavalos a vapor.
5- E por último, lembrarei o casamento
do século. No dia 09 de julho 1890, celebrou-se, aqui em Natal, o primeiro casamento civil, oficiante: o Juiz
Ferreira Chaves. Nubentes: Philipe Pereira do Lago e Marianna Shimphorosa de
Castro Barbosa. Testemunhas: Dr. Joaquim Manoel da Silva Júnior, então
governador do Estado, e João Avelino Pereira de Vasconcelos. Lago e Shimphorosa
foram recepcionados por Silva Júnior.
Factum est illud; fieri non potest(Plauto), et facta potenciora sunt
verbis (afor.jurid.) o fato é este e não se pode evitar que seja (pois) os
fatos tem mais força que as palavras.
Nossos sentimentos eram nobres e bem acomodados às circunstâncias do
tempo. Evitávamos qualquer pedantismo literário ou exibição de comprometida
erudição ou bizantismo. Tanto nos afastamos do Vale de Ouro, o carneiro da
fábula, o qual possuía a faculdade de falar, quanto nos distanciamos do
pedalado Velo Club.
Nossa recreação era bem outra, longe do helenismo heroico de Jasão, o
argonauta que envenenou o dragão e conquistou o Velo. Tampouco levamos em consideração
a pedalagem do escocês Macmillan, inventor da bicicleta, que rodou o Velo Club
Natalense, naquele ano de 1899. Nosso vellus era bem outro; a recreação
descontraída, sem preucupação com a velocidade do tempo. Nada de heróis e
deuses; e muito menos de inventores.
Sem grande esforço de memória ou profundas reflexões filosóficas, nos
adptamos tacitamente ao conselho de Marco Aurélio, em suas Meditações, a de
vivermos cada minuto da vida como se fora o último. Era o que constantemente
nos lembrava Saturnino. Venit hora, et nunc est. E se predominou alguma
filosofia em nosso Inocente Club, essa veio indiretamente pela via aforística,
a sabedoria popular, sem implicação de abusivas premissas. Vale lembrar a
observação de Pe. Júlio Maria: todo filósofo tem a sua ignorância e todo
ingnorante tem a sua filosofia. Que queres mais?
Documentando aqueles citadinos fatos, no que retro ficou dito, o
historiador e Inocente Câmara Cascudo usou a expressão latina – De rebus
pluribus – sobre muitas coisas. Por ter sido Luiz da Câmara Cascudo uma das
vigas mestras do clube dos Inocentes, incluo in rebus pluribus a nossa
sodalitas innocentium, Inocente agremiação a que ele pertenceu e tanto amou ao
lado do seu grande amigo e admirador, José Saturnino, e ao lado de todos nós.
Sodalitas innocentium in facto nulla
est, sed vere in historia manebit.
Realmente, o sodalício hoje ja não existe, mas permanecerá ligado a
histórica lúdica da Cidade de Natal, muito ao gosto de Cascudo. Registrei,
nesse livro, seu nascimento, desenvolvimento e declínio.
Nesse desfecho se enfeixa a frase que Suetônio atribui a Augusto,
preferida no seu leito de morte: acta est fabula – esta representada a peça.
Era assim que terminava o último ato, no teatro romano. Pois assim, também, in
illa nocte, caiu o pano da última cena de nosso inocente convívio, na casa do
historiador e grande mestre, Luiz da Câmara Cascudo.
Concluindo, pois, esses confrontos passageiros, dentro dessas
circustancias históricas, ou mesmo circustâncias temporais, lembro o verso de
Ovídio – tempus edax, homo edacior – o tempo é destruidor, mas o homem é ainda
mais destruidor. Complementou esse verso a vibrante retórica de Cícero: tempori
serviendum est – é preciso que nos acomodemos ao tempo. Sic transit innocentia
nostra – e assim passou a nossa inocência, nossa inofensiva agremiação de
grandes valores humanos.
Desse modo, como escreveu Lucrécio, ocultam-se os segredos da vida –
vitae postcenia celant. E aquela incrição latina aberta numa estátua de Buffon
com a ideia de mensurar o gênio e a grandeza do naturalista francês, eu aqui a
transfiro com a mesma igualdade para os nossos inocentes falecidos: majestati
naturae par ingenium – o Gênio é igual a magestade da natureza.
Et nulla illa nox est.
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Extraído e revisado da 1ª Edição de "Saturnino, Cascudo e o CLUBE DOS INOCENTES". Porto Alegre - RS - 1992, de José Melquíades de Macedo.
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