domingo, 29 de setembro de 2013

O Clube dos Inocentes (VII)

O Simbolismo do Galo e sua Entrada no Clube
O galo ocupa razoável espaço na história humana e no poleiro universal. Pindaro o inclui em uma de suas Odes, definindo-o como símbolo de coragem. Sêneca, na morte de Cláudio, num de palavras entre gallus (galo) e Gallus (gaulês), afirmou que ambos são de grande importância no seu galinheiro – gallus in sterquilinio suo plurimum potest. Participou da morte de Sócrates, o qual, segundo Platão, antes de tomar a cicuta, avisou ao seu discípulo Crito que devia um galo e Asclépio e que ele, Crito, teria que apagar a promessa logo após a sua morte.
O galo era oferta espontãnea que os doentes recuperados levavam, como pagamento, a Asclépio, o deus da medicina: espécie de ex-voto. Na Bíblia, ele empoleirou-se no livro dos Provérbios, dividindo sua altivez com o leão. (Prov. 30,31). Citado nos Evangelhos de Mateus e Marcos, recorrendo ao seu canto, Jesus predisse a negação de Pedro, horas antes de sua prisão, no Getsêmani.
-Antes que o galo cante me negarás três vezes (Mt.26,34). Os romanos dividiam o tempo em quatro partes ou vigílias e a terceira chamavam de gallicinius (galicínio-meia-noite), a hora do galo. Não custou muito e entrou na missa de meia noite, na vigília do Natal – missa do galo. Na Idade Média, subiu as torres das igrejas simbolizando a vigilância. Em inglês, chama-se weathercock a ventoinha em forma de galo para indicar a direção do vento; e, por analogia, diz-se das pessoas que mudam rapidamente de idéias e não têm consistência em seus pensamentos. Passou a relógio, na torre das igrejas – galarim- marcador de ventos.
Na doutrina esotérica, entra como emblema de vigilância indicando ao iniciado o caminho iluminado. Na Maçonaria, colocado junto a ampulheta, avisa que o tempo não pára e anuncia a ressurreição, a vida do verdadeiro iluminador: - eternidade de espírito. Ainda em inglês, há uma expressão  proverbial chamada cock-o-hopp, usada no sentido de bebedeira; por extensão, descontraimento ou despreocupação. Cock, em inglês, é uma palavra usada para o galo. To be cock-o-hoop significa secar o barril de cerveja e ficar em “estado de graça”; alegre, descontraído, no estado etíco. Obedecendo a essa tradição galinácea, resolvemos introduzi-lo no Clube, mas simbolicamente.
O clube, o Treze e o galo
No tempo que o Bar Cisne atuava na Rua João Pessoa, no andar térreo do Edificio Amaro Mesquita, Múcio Miranda, seu dono, costumava, na sexta-feira a noite ou no sábado pela manhã, as vezes a tarde, colocar algumas cadeiras na calçadas para deleite dos frequentadores. Aquele Bar Cisne, localizado bem no coração do Grande Ponto, concentração de políticos, advogados, intelectuais a desocupados, celebrizou-se por três coisas: a incorrigível fedentina do seu sanitário, o fanatismo getulista do garçon, José Américo (agravado pelo peleguismo da sua jangolatria) e por um joguinho de bozó chamado “melé na mesa”, pelo qual, o prof. William Aires tornou-se o campeão dos perdedores.
Numa dessas belas tardes estivais, reunidos ali numa cervejada Cascudo, Saturnino, Ascendino, Severino Nunes e eu, depois de simbolicamente ouvirmos “o canto do galo”, que ainda ressoava nas páginas da história, discutimos informalmente a possibilidade de mandarmos cunhar uma medalha de ouro com o número 13 encimado por um galo e que essa medalha servisse de insígnia, o Clube contava apenas com 13 associados e o emblema se ajustava bem a tradição galinácea a medicina, a vigilância e a roleta ou ao jogo de sorte. Treze era o número ideal; galo, o símbolo adequado.
Todavia, a idéia morreu no nascedouro, permaneceu na sugestão e não passou da calçada do Bar Cisne. O Clube aumentou o número, pois sempre que um morria ou outro se mudava, podíamos colocar um terceiro em seu lugar, sem contudo o substituir. Inocente era rei-vassalo enquanto “bem servisse”. E por esse tempo só dois haviam morrido: Milton Cavalcante e Djalma Santos.
O número 13 também possui a riqueza de sua representação na formação dos algarismos. Treze pessoas sentaram-se para celebrar a última ceia: Jesus e os 12 apóstolos. Em Londres, havia o Clube dos Treze, um sodalício fundando para combater a superstição. Uma das curiosidades mais interessantes, sobre o número 13, ocorre no livro de Brawn, um matemático inglês, o qual, confrontando exaustivamente calendário e séculos, chegou a conclusão de que, de 4 em 4 séculos, o dia 13 cai, no domingo: 687 vezes. Na segunda : 685. Na terça igualmente 685. Na quarta: 687. Na quinta: 684. Na sexta: 688 e nos sábado 685.
Como se vê do paciente calculista britânico, o número 13 ocorre mais vezes na sexta-feira, o que tem gerado muita superstição. Escreve Melo e Souza, no Folclore da Matemática, que na antiga Constituição do Estado do Espírito Santo não constava o artigo 13; os legisladores capixabas, supersticiosamente, suprimiram-no. Também  assim já é demais.
De qualquer modo, o galo e o número 13 bateram asas, voaram do clube dos Inocentes. E o número fixou-se em 14, depois da morte dos dois primeiros sócios. O Aleijadinho, no seu “atelier da Renascença”, nas palavras de Mário de Andrade, fugindo ao número 13, idealizou, na sua maravilhosa imaginação, uma Ceia Larga com 14 participantes: Jesus, os 12 Apóstolos e um soldado romano que aparece, como penetra, e participa da eulogia. Nosso ágape contentou-se com os 14 convidados.
Fiquemos por aqui, ruminando o bocado de saudade dessa memorável agremiação, que nunca mais se reuniu e permanece em fase de extinção. Seus melhores animadores já partiram para o Oriente Eterno: Milton, Djalma, Saturnino, Cascudo,João Medeiros, Ascendino. Em Natal, restam pouquíssimos: Gorgônio Regalado, Severino Nunes, José Leiros, Reginaldo Medeiros, Eulício Farias, Diógenes da Cunha Lima, Arnaldo Azevedo* e o autor destas memórias.
Feliciano mudou-se pra o Sul do País. Renato voltou as suas atividades, no seu estado de São  Paulo: aquele capitão-de-mar-e-guerra (um dos convidados de Saturnino a participar ativamente de algumas reuniões nossas nem lhe sei o nome) perdeu-se nas vastidões talássicas  - mare proluit  omnia; Frank Walton foi tomar sua bênção ao Tio Sam – benedicite, e não se sabe se foi abençoado, pois nunca mais nos deu notícia da benedictio patrui...ad ostentationem nostram. Vale, aqui, o prazer ou a alegria de recordar aqueles tempos felizes, na conformidade da narrativa da Eneida: meminisse juvabit...melioribus annis.

Luís da Câmara Cascudo




*Arnaldo, meu melhor amigo (levei-o para o Clube). Faleceu inesperadamente, no dia 18.09.91, sete meses após ter escrito essa belíssima apresentação a este livro.

domingo, 8 de setembro de 2013

Clube dos Inocentes (VI) - A Iniciação.



Luiz da Câmara Cascudo, à esquerda. Foto do Google. Nota: a foto não se refere a uma "reunião" do clube, mas de um evento "social" regado a cervejas e uísques. Sem data.




Convite e Iniciação
As “iniciações”, no começo, limitavam-se a um convite e aquiescência tácita aceitas pelo grupo. Mais tarde, Cascudo introduziu um “ritual”, na sua casa. Depois de selecionado o nome do novo integrante, reuníamo-nos em sua biblioteca para a “cerimônia” de aprovação. Via-se o recipiendário sentado numa cadeira de palhinha e nesse trono improvisado era coroado com a “mitra” espelhada de um “galante” do boi-de-reis. O “neófito” segurava um centro também improvisado, às vezes um cipó de jucá, simbolizando o tirso na mão de Dionísio.
O Clube tinha a sua senha: rei-vassalo – repetida obrigatoriamente quando nos encontrávamos. Como toda senha é um sinal convencionado para reconhecimento das pessoas, a nossa era transmitida e explicada: ao mesmo tempo rei e vassalo, príncipe e súdito. Esse dualismo de concepções opostas foi idéia de Cascudo para nos lembrar o nosso princípio de “inocência”, a criança que brinca de rei e cria seus “castelos no ar”.
Nisso residia uma parcela do epicurismo tão repetido por Saturnino, aquela parte que recomenda a humildade; ou não era nada, apenas fruto de nossa “inocente” imaginação. Nas reuniões em casa de Cascudo, quando a cerveja espumava ou o vinho fermentava nos copos, era ele mesmo quem, lá para as tantas da fresca madrugada, tomava a iniciativa de apanhar as suas comendas e as distribuir entre nós outros, condecorando cada um a seu modo. Assim, pois todos passavam a comendador nesse ou naquele grau. Saturnino, como o professor da Marinha, recebia sempre medalhas do Mérito Naval do Almirante Tamandaré. Cada inocente era agraciado com uma daquelas medalhas penduradas no pescoço. Pela abundância e riqueza de detalhes no verso e anverso, essa distinção de amizade pendurada ao peito me dava a impressão da medalha milagrosa pela maneira como estava momentâneamente honorificado. Saturnino, já um tanto avinhado e avermelhado, Cascudo costuma repetir: eis o nosso conde... coroado.
Nem Hipócrates nem Basilides
Cascudo, no convivio do Clube, era pródigo e expansivo em divertidas improvisações. Às vezes mandava o recipiendário ajoelhar-se sobre uma almofada, empunhava uma espada e, numa informal postura de um D’Artagnam quixotesco, bem distanciado do Visconde de Bragelonne, estendia o gládio sobre a cabeça do “iniciado”, ordenando-lhe repetir um juramento improvisado, aquilo que propositamente se jura e não se cumpre. Quem ia lá se lembrar de Apolo, Asclépio ou Esculápios, deuses e deusas do Olimpo longínquo, conforme Hipócrates impunha aos jovens médicos de Cós para constrangimentos dos velhos clínicos de cá!
Nessa postura de espadachim pacifista, Cascudo era fértil em escamotações eloquentes, dir-se-ia, o abracadabra da magia verbal.Para nós que o admirávamos, toda essa sua expontaneidade nos parecia um passe de mágica. De uma feita, para satisfação de todos os Inocentes presente, ele encostou a espada na cabeça do genuflexo Diógenes da Cunha Lima e logo após o juramento gracioso, sem as implicações da fórmula mágica usada nos abraxás criados pelo pitagórico Basilides, improvisou esta inocente mensagem, que valeu por dez pedras preciosas usadas como amuletos para os 365 dias do ano, pela tradição de Basilides:
_ Diógenes... de hoje por diante... rei de todos os vassalo e vassalo de todos os reis. Estava terminado o cerimonial improvisado para a aceitação do novo sócio. E partimos para levantar o brinde à saúde do rei, bem ao gosto do costume da corte. A largos haustos, bebemos todas a saúde reservala ao príncipe.
Potina, Fabulino e Locutino
Havia, entre os romanos, duas divindades protetoras da infância, da meninice, enfim, da inocência: Fabulino e Potina. Fabulino ensinava a criança a falar convenientemente. Potina, a beber. O Clube dos Inocentes acatou esse modus loquenti e esse modus bibendi dos romanos mas, como diziam os mesmos romanos – bono modo – sem exagero. Falar convenientemente e beber o suficiente para não perder a inocência. Perguntarão, talvez, - e todos se comportaram assim?
Responderei: nem todos. Alguns se excediam, mas fora do Clube. Isso porém, não nos tocava, tampouco nos competia vigiá-los. Fora das vista, longe do pensamento, escreveu Homero na sua Odisséia, repetido por Marco Aurélio, nas Meditações. Deixemos de fora os imoderados.
Prevalecia, também, entre os romanos, o culto ao deus Locutino, uma outra divindade invocada para orientar a conversa das crianças, o ensino da Ortoepia. Essainspiração nunca faltou aos integrantes de nosso Clube: confabulação ou boa conversa. Entretanto, nunca houve uma oportunidade de todos nós 13 nos sentarmos à mesa para recordar o modus loquendi de Fabulino ou, como ainda repetiam os latinos – loquela tua manifestum te facit – pela conversação se conhece o espírito de cada um. Fabulino não nos concedeu essa graça.
Inspirado na narrativa do Evangelho, Leonardo da Vinci reuniu, no quadro da ceia larga, Cristo e os Doze Apóstolos. Na Inglaterra, houve, numa determinada época, o Club dos Treze (Clube of Thirteen) cuja finalidade era combater as superstições. Pitigrilli, num artigo traduzido para o Diário de Notícias, afirma que D’Anunzio, no “decorrer do ano 1913”, datava as suas cartas escrevendo assim: 1912 + 1. Isso é o cúmulo da superstição. Conta-se ainda que o Papa Gregório Magno costumava oferecer um almoço a 12 pobres. Um dia, reunidos os humildes convidados para o ágape, apareceu Jesus para participar da refeição. Daí por diante, o número 13 recuperou-se como número de sorte. Pelo menos no Vaticano.
Nós, os inocentes, apesar de sermos 13, jamais tivemos a sorte de nos sentarmos todos juntos para um almoço ou uma ceia. Nenhuma de nós era supersticioso. Até se cogitou de se criar um emblema para o Clube: um galo de ouro encravado no número 13, que deveria ser usado na lapela. Discutiu-se a idéia. A proposta foi aprovada, mas a forma nunca se materializou. O galo é 13 no jogo do bicho. Talvez nem precisasse dizê-lo.
Assim era o Clube dos Inocentes. José Saturnino adoeceu em 1974. Ele era a alma do Clube. De sua enfermidade para cá nunca mais nos agrupamos. Resta-nos, hoje, a saudade dos que partiram para o mistério das sombras: Milton, Djalma,Cascudo, José Medeiros, Ascendino e o insubstituível Prof. José Saturnino. As horas de prazer voam ligeiras, costumava repetir o poeta Bocage.
As Retras de Licurgo
Como já mencionei, o Clube não tinha estatuto, dispensava ata, não exigia anotação de espécia alguma. Licurgo, na reforma administrativa que impôs a Esparta, criou uma ordenações chamadas retras. Por essa inovação no sistema das leis espartanas, Licurgo recomendava que nada se escrevesse. O importante eram os costumes e não a lei escrita. A eficácia da lei estava na boa aplicação consetundinária: dispensava publicação ou codificação. Pensava Licurgo que essa Legislação ou essa forma de direito fora ditada pelos deuses. Uma noite, Cascudo, Saturnino e eu, numa daquelas nossas “espumantes” tertúlias, discutimos o mérito das retras e ficamos “enebriados”, perdidos nas recordações da Grécia antiga, revividas na inocência readquirida em nosso Clube. Haja inspiração!
E novamente vieram as recomendações: nada de ata ou minúcias de registro escrito. Entretanto, esse comportamento não proibia que alguém tirasse da conversa algum proveito e o recuperasse em seu diário ou em algum artigo de jornal. O que se recomendava era a despreocupação nos movimentos “felizes” de nossas descontraídas reuniões. Já bastavam as atas mal redigidas, o português comprometido em solecismo e pontuação inadequada, que constantemente éramos obrigados a ouvir e ver, enfadonhamente, em certas agremiações lítero-esportivas, lembrava o Prof. Saturnino. Nosso Clube fora idealizado para recreação, “for relax” ou, como o mesmo Saturnino repetia, “dar uma prega no tempo” e sermos inocentes das maldades alheias. Hoc fac et vives, emendava eu com o conselho de Cristo: fazer isto e viverás. Nada de regras imposta: nenhuma disciplina comprometedora. Tudo deveria correr livremente ou espontaneamente. Esse direito ou isenção de normas rígidas nos recomendava a ser livres e de bons costumes.
Apesar de todos esses descontraimentos, não hesitei em escrever alguns artigos para os jornais A Ordem e A Tribuna do Norte, além de outras anotações no meu diário íntimo. Infelizmente, a falta das datas precisas, a precariedade da minha vista não permitem rebuscar esses arquivos ou revelar, aqui, essas ingênuas publicações. A própria filosofia do Clube dispensa esse preocupante e estafante esforço.
Em 1960, quando regressei dos EE.UU cheguei a fazer um documentário filmando em 8mm sobre 8 componentes do nosso Clube. Lá está Cascudo bem “novinho”, lépido e com excelente aidição, posando para minha humilde câmera acendendo e baforando o seu charuto Danemann, Renato Gouveia, “o presidente pérpetuo enquanto bem servir”, constrída uma casa na Rua Princesa Isabel e sai dos montões de caliça e tijolo pela porta de seu Gordini encarnado fumando um cigarro Continental. O filme ainda está no meu poder como uma recordação viva do que fomos e já não somos mais: - Arnaldo, Saturnino, Eulício, Zé Leiros, Severino Nunes, Ascendino e Reginaldo Rocha participam desse documentário.
Mas nunca esqueci e ainda guardo vivamente na memória o que aconteceu, em casa de Reinaldo Ferreira, no dia 21.4.1955, um almoço que nos ofereceu esse anfitrião com o repasto de um enorme peru-ema. Esqueçamos, por enquanto, as retras de Licurgo.

Em Casa de Reinaldo Ferreira – O Peru-Ema
Para despreocupação dos Inocentes, quando se reuniam, documentei o seguinte acontecimento. Certo dia, (precisamente 21.4.55) Reinaldo Ferreira da Costa ofereceu-nos um almoço em sua residência, na Rua São Sebastião, Bairro das Rocas. Ali foi imolado um imenso peru que mais se assemelhava a um daqueles monstruosos pássaros descritos na mitologia grega. Comemorava-se o aniversário de Reinaldo.
Gorgônio Regalado, o orador, apelidou-o de peru-ema. Antes mesmo de o peru-emas ser servido, Reinaldo nos trouxe uma panela de goiamuns cevados cuja patas avolumadas e possantes cortariam, estou certo, as presas de um elefante. Admirado de ver “tamanhas dianteiras”, Gorgônio, após ter comido, com o auxílio de um martelo, uns dez goiamuns, proferiu esta palavra que, entre os Inocentes, ficaram mais célebres do que o sermão de Vieira aos Peixes.
-“Se alguém de vós disser que comeu mil e um carangueijos e ficou com fome, não o desmintais”. Gorgônio queria dizer que, quanto mais se come o crustáceo, mais se acumulam as sobras e menos se mata a fome. Interrogado Saturnino por Severino Nunes se o português de Gorgônio estava correto, o mestre levantou-se de pata em punho, respondendo-lhe com a mesma ênfase dos superlativos de José Dias, no Dom Casmurro: corretíssimo!... Entre os Inocentes destacava-se um convidado especial, Ezequiel Pires, muito amigo de Severino Nunes. Em casa do anfitrião encontravam-se Francisco Sabino e João Lima integrantes do conjunto musical IAP, homenagem à extinta Informação da Agência Pernambucana ou os auto-falantes pertencentes ao saudoso Luiz Romão. O peru-ema foi cuidadosamente preparado e guisado pela esposa de Reinaldo, dona Marina. Reinaldo não pertencia ao Clube dos Inocentes.
Vale uma explicação. Reinaldo Ferreira da Costa, músico e sapateiro, era o homem dos sete instrumentos. Tocava violino, no coro da Igreja de São Sebastião, nas Rocas, e violão, no Clube Andaluzia, na Ribeira. Lá, no Clube, divertia-se,dançando transando com as ímpias Madalenas. Cá, na igreja, entretinha-se rezando e cantando com as piedosas filhas de Maria.
Nas horas vagas, Reinaldo aplicava meia-sola em sapatos. Nesse assunto tem sido, até hoje entre nós outros, superior aos sapateiros as antiga Jônia. Pelo menos jamais se aventurou a criticar nenhum dos nossos Apeles. Tampouco necessitou de usar a charlatanice daquele sapateiro de Èsopo que, reduzido à miséria, tentou ganhar a vida, como médico, num lugar distante, onde ninguém o conhecia. E lá conseguiu iludir uma boa clientela vendendo remédios falsificados e passando diagnósticos comprometedores.
Trocando os pés pela cabeça, saiu-se muito mal, porque adoeceu o rei, e, chamado a socorrê-lo,como não sabia medicá-lo, obrigou-se a confessar a criminosa aventura. O rei o puniu.Reinaldo, apesar de ter-se mudado, a um tempo, para o Rio, ainda hoje contenta-se humildemente com os seus unstrumentos musicais. Na sua oficina de sapateiros, sua única preocupação é aperfeiçoar o modelo das sandálias, motivo pelo qual não quer ir além disso. Continua o homem dos sete instrumentos. Ainda hoje bate sola, sino,violão e pandeiro coma as mesma habilidade. Harmoniza o compasso das mãos ao ritmo dos pés. Ailson Gibson que o diga.
Ora, como Reinaldo Ferreira foi um grande admirador de Saturnino, e recebeu, principescamente, em sua casa, naquele sábado, o Clube dos Inocentes, para um banquete a patas e patos, aqui lhe dedico estas observações nas reminiscências de nossa história, sem esquecer a frase de Gorgônio Regalado:
-Se alguém de vós disser que comeu mil e um caranguejos e ficou com fome, não o desmintais...
Avis Incârum Rara
Quanto ao peru-ema reservado por Reinaldo Ferreira ao Clube dos Inocentes, lembro-me daquele cardapium organizado pelo latinista mineiro, Dr.Diogo de Vasconcelos, preparado com o sal de Plínio – adita salis grano – e oferecido, num  jantar, a dignitários eclesiásticos. Todos os preparativos para a Ceia Larga foram cuidadosamente estudados em sua chácara de Ouro Preto. Vasconcelos apresentou o seu cardapium aos sacerdotes com esta jocosa sonoridade latina:-Prandium clericale,ut imago Coenae Domini post solemnem benedictionem – ou seja – banquete clerical, que a semelhança de Ceia do Senhor, realiza-se depois de benção solene.
Cardapium, como ementa de pratos, preços e iguarias, já é etimologicamente um belo artificio arranjado, em latim: charta daps – folha escrita com refeições. Daps, em latim, era a refeição ritualística (sacrificio) de que se serviam os deuses. Por este cardápio, observa-se quanto os deuses eram de paladar exigente. Prossigamos com o prandium invitatus do humanista Diogo de Vasconcelos ou o seu banquete canônico preparado na liturgia dos dois calendários – XII kalendas maji MCMXVII – em maio de 1918. Saboriemos de seus preciosos acepipes:
_ Jus pontificale – a sopa (servida as monsenhor)
_ Ostracismus atheniensis comparatus – ostras recheadas
_ Orysa Oviparis crementa- arroz ao forno(destinado ao cônego)
_ Phaselus tutus ob lubum – tatu de feijão com lombo.
O orador sacro saboreou aper Davini gratia evolutas – leitão ou javali evoluído graças a Darwin. E um canonista serviu-se regaladamente de avis incarum rara – peru ou ave rara dos incas. Convém lembrar, nesse sutileza filológica, que o peru era a língua primitiva falada pelas nações incas. Nesse inteligente e divertida aproximação, Vasconcelos utilizou-se do mesmo jogo de palavras já usado por Sêneca, em – gallus (gato) e Gallus (gaulês). Já me referi a isso anteriormente. No banquete clerical de Vasconcelos, além das alusões a Jesus Cristo, aos incas e a Darwin, não faltou, na condimentação, uma pitada do sal ático: astrocismus atheniensis crementa.
Assim, pois nesse clima de avis rara ou banquetes sagrada também oferecido, nas Rocas, aos deuses inocentes, é que entra o nosso peru-emas ou a avestruz de Reinaldo Ferreira. Tem o mesmo sabor da avis incarum rara condimentada em Ouro Preto, nos idos de 1918 e saboreado pelos padres de boa vida. Bem ao gosto do latinista Vasconcelos, vamos chamar o peru-ema da fauna ”gorgoniana” de gallus indicus, et struthiocamelus. Que me perdoem os seguidores de Darwin pela origem dessa espécie rara ou dessa evolução espontaneamente natural.
Todas essa glutonaria de melindrosos paladares me faz lembrar aquela rara avis in terris mencionada na sátira de Juvenal. Entretanto, Juvenal referia-se ao cisne negro – nigroque simillima. O peru-ema de Reinaldo teve sabor, mas não lhe vi a cor. E por avis rara entende-se, hoje, tudo aquilo que é único ou extraordinário, do mesmo modo que o grãozinho de sal da já deturpada frase de Plínio serve para retemperar a moderação ou o comedimento – cum grano salis – com certa reserva.
É extraordinariamente reservado que eu ainda ativo as glândulas salivares ao descrever o sabor daquele peru-ema, recordando aquela ensolarada manhã de 1955, ad kalendas aprillis. Por muito menos, o Padre Bacelar, o filólogo que fez a língua portuguesa originar-se diretamente do grego, no seu inusitado Dicionário Etmológico, definiu o caranguejo como “um peixe vermelho que anda para trás”; e deu ao cágado essa desengonçada origem: sapo concho. Esses disparates levaram um crítico a dizer que o caranguejo não é peixe nem é vermelho nem anda pata trás. Mas, o pobre do cágado continua testudamente se arrastando muito ancho.
Já o Dr.Castro Lopes, rei dos neologismos, traduziu a reunião campestre que os ingleses chamam de picnic por converscote – (banquete + escote). Escote, no sentido de cota para as despesas, é um galicismo – ecot – reunião dos que comem juntos. Nesse caso, o convescote criado por Castro Lopes virou algazarra numa granja de árabes. Nesse descampado convívio em que as formigas também tomam parte, o peru-ema de Reinaldo Ferreira perderia seu sabor, mesmo que as coxas e a tutela fossem servidas em estilo king size sandwiches, ou seja tamanho família.

Quanto ao Prandium Clericale temperado na cocina ou coquina de Diogo de Vasconcelos, para plenitude do cardapium, consulte-se Phrases e Curiosidades Latinas ,de Arthur de Rezende. E fiquemos com a memória do peru-emas associada á avis incarum rara ou ao gallus indicus, er struthiocamelus. Que prevaleça a inocência. Não nos esqueçamos da filosofia do nosso clube: inocentes das maldades alheias.
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O Próximo capítulo:
O Simbolismo do Galo
e sua Entrada no Clube (página 23).

segunda-feira, 2 de setembro de 2013





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Professor Saturnino e o Clube dos Inocentes (V)- continuação

E assim nasceu a sociedade mais inofensiva desse mundo. Os seus membros eram limitados, escolhidos e selecionados, prudentemente, mediante a consulta prévia e não podia pertencer a ele quem se preocupasse com a vida alheia. Estabeleceu-se que o Clube não teria estatutos nem suas reuniões obedeciam a pauta ou a qualquer norma formal. Nada de anotação. Quem tivesse memória que não o esquecesse. Um aprendizado acroamático ou epóptico à maneira dos discípulos de Aristóteles.
Tudo se fazia para evitar regras. Nada de direito escrito. Bastavam os bons costumes. Por essa razão, o Clube não tinha ata. Quem nele ingressava era INOCENTE ENQUANTO BEM SERVISSE. Quem seguisse fielmente a filosofia de ser “inocente das maldades alheias” seria inocente vitalício, somente substituído pela morte. E onde se reunissem dois ou três em seu nome, ai estava reunido todo o Clube. Exigia-se apenas que se reservasse uma taça vazia e nela cada um dos participantes derramasse, até enchê-la, goles de cerveja pelos ausentes. Os cargos eram intransferíveis e irrenunciáveis. Assim, pois a primeira diretoria eleita em 1954 é ainda a de hoje, mesmo com toda a dispersão, e ficou constituída desse modo:
_ Luís da Câmara Cascudo – Presidente de honra
_ Renato Gouveia – Presidente perpétuo (enquanto bem servir)
_ João Medeiros Filho – consultor Jurídico
_ Djalma Santos – Tesoureiro
_ Milton Cavalcanti – Chefe do cerimonial
_ Reginaldo Rocha de Medeiros – Introdutor diplomático
_ José Saturnino – Conselheiro-mor
_ Raimundo Feliciano das Graças – Diretor espiritual
_ Gorgônio Regalado Medeiros – Orador
_ José Melquíades de Macêdo – Relações públicas
Com o tempo foram ainda “iniciados nos inocentes mistérios”: Severino Nunes, Arnaldo Arsênio de Azevedo, Ascendino Henriques de Almeida Jr., Eulício Lacerda, Diógenes da Cunha Lima, José Leiros e o americano Frank Walton. Esse Clube se reunia informalmente, ora no bar, ora no lar, em casa de um ou de outro. Todos se cotizavam proporcionalmente e ninguém sobrecarregava ou sacrificava ninguém. As reuniões mais frequentes ocorriam às sextas-feiras, à noite, algumas vezes na casa de Renato, outras, na casa de Cascudo.

Inocentes das maldades alheias, segundo o princípio fundamental do sodalício. As bases do humanismo prevaleciam sobre os mais esclarecidos e esses se preocupavam em associá-lo ao conselho de Sêneca que assim expressa: nemo referre gratiam scit, nisi sapiens – só o discreto sabe agradeo beneficio. Daí se partia para a advertência de um grande frade alemão feita pilhericamente à sua congregação: bibite, frates, ne diabolus vos attiosos inveniat – bebei, irmão, para que o diabo não vos surpreenda na ociosidade. Essas duas máximas associaram-se à recomendação de Marco Aurélio, nas Meditações,- viver cada minuto da vida como se fosse o último - e assim alicerçou-se a doutrina de nossa inocência dividida entre o estoicismo contemplativo e o cristianismo evangélico. Era o tridiadismo dos tresnoitados.
Fonte: Saturnino, Cascudo e o Clube dos Inocentes, de José Melquíades - 1ª edição - Porto Alegre/RS - 1992.