terça-feira, 16 de julho de 2013

O Clube dos Inocentes (IV)

Professor Saturnino e o Clube dos Inocentes.
José Melquíades *

José Saturnino gostava muito de reuniões informais onde pudesse, descontraidamente, saborear a sua cerveja ou degustar o seu precioso vinho para, como costumava dizer, “dar uma prega no tempo”. Dentro desse espírito de despreocupação é que se formou o Clube dos Inocentes. A idéia nasceu lá pelos idos de 1952 com Djalma Santos, ex-aluno nosso, no Curso 91, e muito afeiçoado a Saturnino. A Djalma e Saturnino juntou-se outros ex-alunos nosso, Raimundo Feliciano das Graças, rosacruciano e iniciado nas práticas esotéricas da AMORC. Feliciano seguia convincentemente o alquimista Rosenkreutz, o alemão que esposava a doutrina baseada nos Grandes Mistérios do Egito e parece ter acreditado na sua própria ressurreição, pois recomendou que selassem o seu túmulo com esse esperançoso epitáfio latino: post CXX Annos Patebo – depois de cento e vinte anos retornarei. Não consta que tenha ressurgido do Mistério da Morte, mas isso é lá com os alquimistas.
Saturnino também se dava às práticas esotéricas, embora o fizesse com certo amadorismo. Djalma, dos três, era o que menos se preocupava com os alquimistas e pouco importava que o vil metal se transformasse em ouro ou prata. Bancário, contentava-se com a inflação. Sua pedra filosofal era Saturnino. De qualquer modo, os três acreditavam naquela alquimia espiritual dogmatizada de mortal” transformava-se no “ouro do espírito imortal”; e deixamos para lá o simbolismo alquimista.
Djalma era gordo e divertido. Feliciano, alto e magro, “um preto de alma branca”, dizia Saturnino, o mais divertido do trio. O Clube dos Inocentes, no seu primeiro impulso, chamou-se os Três Mosqueteiros. Saturnino esposava as concepções antigas e acreditava que o número três era divino. Sabia que os gregos e os romanos tinham-no como um número misterioso. Por trás das floridas sombras da Morte, as três Parcas infernais. O número três é cabalístico por excelência. Entretanto, os três Mosqueteiros, que se encarnavam em Saturnino, Djalma e Feliciano não seguiam a cabala, tampouco levavam a sério Alexandre Dumas. Mesmo que simbolicamente Saturnino representasse Luís XIII, ainda assim a espada de d’Artagnan fundiu-se na taça de Gambrino.
Em seguida, juntou-se ao bando itinerante Renato Gouveia, cronologicamente, o segundo gerente, em Natal, do Banco do Estado de São Paulo (Banespa). Esse Banco instalou-se na Rua Padre Miguelinho com a Quinze de Novembro, na embocadura do prostíbulo. Algumas tradições já se formam comprometidas em suas origens. Por exemplo, a lenda de Rômulo alimentada pela loba – lupa – criou-se envolvida na sedução de Rhéa Silvia e na infidelidade da esposa de Fáustulo, chamada Laurência apelidada de Loba. Não tardou muito e apareceram os lupanares. Bem, ali nas vizinhanças na rua ”15 de Novembro”, a toca de lupas, instalou-se o Banespa. A coincidência das instalações bancárias com as margens do lupanar é um fato. O desenvolvimento pode virar lenda. No primeiro Banespa atuava o Gouveia paulistano. Renato tornou-se grande amigo de José Saturnino. Entrou no bando dos Três Mosqueteiros como Pilatos entrou no Credo e lá ficou.
No Digesto Jurídico – De verborum significatione – há uma máxima atribuída a Nesário Prisco que assim se lê: Tres Faciunt Collegium – Três fazem o número. Nesário, que também foi cônsul romano lá pelo ano 100 de nossa era, sustentava que uma sociedade para sobreviver, juridicamente constituída, deve, pelo menos, contar com três associados. Entretanto, com o ingresso de Renato Gouveia no triunvirato, o grupo não poderia chamar-se Três Mosqueteiros, pois um trio com quatro integrantes é como uma quadra com cinco versos, embora Câmara Cascudo se refira a uma quadra de Florentino composta exatamente em cinco versos. Grieco fez a devida observação no seu livro Disparates do Todos Nós. Juntei-me ao grupo e a ele atrelamos Câmara Cascudo. Tratamos logo de conseguir um nome mais apropriado que definisse bem a nossa ingênua agremiação. Saturnino teve o estalo: Clube dos Inocentes. Cascudo aprovou-o; aprovâmo-lo nós outros. E o mesmo Saturnino traçou a filosofia do Clube – inocentes das maldades alheias. Era a doutrina angélica das despreocupações. E eu lhe dei o lema tirado do Evangelho de São João: Venit hora et nunc est – vem a hora e eis que já veio. Complementava-se o fatalismo evangélico, segundo as palavras de Mateus: “todos os cabelos das vossas cabeças estão contados”.


- Vestri autem capilli omnes numerati sunt. Récem egresso do Seminário, estava com a cabeça cheia de cabelos e também de latim. Com o tempo vieram as caspas. A palavra caspa nos veio do árabe (gasseba) e saiu da cabeça de Maomé e não do divino crânio de Jesus. De qualquer modo, iniciei, no Clube dos Inocentes, o meu princípio de calvície e, com o tempo, inexoravelmente, deixei para a contagem eterna os fios caídos na testa e o pensamento lá perto de Deus. Finalmente, Nós éramos e somos inocentes das maldades alheias. Crianças adultas!
*Saturnino, Cascudo e o Clube dos Inocentes foi impresso em 1992, em Porto Alegre/RS, na gráfica do Senai, 48p.

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