Professor
Saturnino e o Clube dos Inocentes.
José Melquíades *
José
Saturnino gostava muito de reuniões informais onde pudesse, descontraidamente,
saborear a sua cerveja ou degustar o seu precioso vinho para, como costumava
dizer, “dar uma prega no tempo”. Dentro desse espírito de despreocupação é que
se formou o Clube dos Inocentes. A idéia nasceu lá pelos idos de 1952 com
Djalma Santos, ex-aluno nosso, no Curso 91, e muito afeiçoado a Saturnino. A
Djalma e Saturnino juntou-se outros ex-alunos nosso, Raimundo Feliciano das
Graças, rosacruciano e iniciado nas práticas esotéricas da AMORC. Feliciano
seguia convincentemente o alquimista Rosenkreutz, o alemão que esposava a
doutrina baseada nos Grandes Mistérios do Egito e parece ter acreditado na sua
própria ressurreição, pois recomendou que selassem o seu túmulo com esse
esperançoso epitáfio latino: post CXX Annos Patebo – depois de cento e vinte
anos retornarei. Não consta que tenha ressurgido do Mistério da Morte, mas isso
é lá com os alquimistas.
Saturnino
também se dava às práticas esotéricas, embora o fizesse com certo amadorismo.
Djalma, dos três, era o que menos se preocupava com os alquimistas e pouco
importava que o vil metal se transformasse em ouro ou prata. Bancário,
contentava-se com a inflação. Sua pedra filosofal era Saturnino. De qualquer
modo, os três acreditavam naquela alquimia espiritual dogmatizada de mortal”
transformava-se no “ouro do espírito imortal”; e deixamos para lá o simbolismo
alquimista.
Djalma era
gordo e divertido. Feliciano, alto e magro, “um preto de alma branca”, dizia
Saturnino, o mais divertido do trio. O Clube dos Inocentes, no seu primeiro impulso,
chamou-se os Três Mosqueteiros. Saturnino esposava as concepções antigas e
acreditava que o número três era divino. Sabia que os gregos e os romanos
tinham-no como um número misterioso. Por trás das floridas sombras da Morte, as
três Parcas infernais. O número três é cabalístico por excelência. Entretanto,
os três Mosqueteiros, que se encarnavam em Saturnino, Djalma e Feliciano não
seguiam a cabala, tampouco levavam a sério Alexandre Dumas. Mesmo que
simbolicamente Saturnino representasse Luís XIII, ainda assim a espada de
d’Artagnan fundiu-se na taça de Gambrino.
Em seguida,
juntou-se ao bando itinerante Renato Gouveia, cronologicamente, o segundo
gerente, em Natal, do Banco do Estado de São Paulo (Banespa). Esse Banco
instalou-se na Rua Padre Miguelinho com a Quinze de Novembro, na embocadura do
prostíbulo. Algumas tradições já se formam comprometidas em suas origens. Por
exemplo, a lenda de Rômulo alimentada pela loba – lupa – criou-se envolvida na
sedução de Rhéa Silvia e na infidelidade da esposa de Fáustulo, chamada
Laurência apelidada de Loba. Não tardou muito e apareceram os lupanares. Bem,
ali nas vizinhanças na rua ”15 de Novembro”, a toca de lupas, instalou-se o
Banespa. A coincidência das instalações bancárias com as margens do lupanar é
um fato. O desenvolvimento pode virar lenda. No primeiro Banespa atuava o
Gouveia paulistano. Renato tornou-se grande amigo de José Saturnino. Entrou no
bando dos Três Mosqueteiros como Pilatos entrou no Credo e lá ficou.
No Digesto
Jurídico – De verborum significatione – há uma máxima atribuída a Nesário
Prisco que assim se lê: Tres Faciunt Collegium – Três fazem o número. Nesário,
que também foi cônsul romano lá pelo ano 100 de nossa era, sustentava que uma
sociedade para sobreviver, juridicamente constituída, deve, pelo menos, contar
com três associados. Entretanto, com o ingresso de Renato Gouveia no
triunvirato, o grupo não poderia chamar-se Três Mosqueteiros, pois um trio com
quatro integrantes é como uma quadra com cinco versos, embora Câmara Cascudo se
refira a uma quadra de Florentino composta exatamente em cinco versos. Grieco
fez a devida observação no seu livro Disparates do Todos Nós. Juntei-me ao
grupo e a ele atrelamos Câmara Cascudo. Tratamos logo de conseguir um nome mais
apropriado que definisse bem a nossa ingênua agremiação. Saturnino teve o
estalo: Clube dos Inocentes. Cascudo aprovou-o; aprovâmo-lo nós outros. E o
mesmo Saturnino traçou a filosofia do Clube – inocentes das maldades alheias.
Era a doutrina angélica das despreocupações. E eu lhe dei o lema tirado do
Evangelho de São João: Venit hora et nunc est – vem a hora e eis que já veio.
Complementava-se o fatalismo evangélico, segundo as palavras de Mateus: “todos
os cabelos das vossas cabeças estão contados”.
- Vestri
autem capilli omnes numerati sunt. Récem egresso do Seminário, estava com a
cabeça cheia de cabelos e também de latim. Com o tempo vieram as caspas. A
palavra caspa nos veio do árabe (gasseba) e saiu da cabeça de Maomé e não do
divino crânio de Jesus. De qualquer modo, iniciei, no Clube dos Inocentes, o
meu princípio de calvície e, com o tempo, inexoravelmente, deixei para a
contagem eterna os fios caídos na testa e o pensamento lá perto de Deus.
Finalmente, Nós éramos e somos inocentes das maldades alheias. Crianças
adultas!
*Saturnino, Cascudo e o Clube dos Inocentes foi impresso em 1992, em Porto Alegre/RS, na gráfica do Senai, 48p.
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