sábado, 13 de julho de 2013

O Clube dos Inocentes (III)

Professor Saturnino e o Clube dos Inocentes
Como não recordar o prof. José Saturnino? Aquela figura afável, risonha, comunicativa! Saturnino dominou o cenário natalense com sua presença, sua personalidade e sua participação ativa nos meios culturais e pedagógicos de nosso Estado e, particularmente, da nossa cidade de Natal. Professor da várias gerações,deixou a marca de caráter, dos seus conhecimentos e ensinamentos de vernáculo em casa uma delas. Todos os seus ex- alunos, amigos e colegas lembram-se dele com verdadeiro carinho e veneração. Falar em Saturnino desperta a saudade de sua convivência.
Integrado na paisagem emocional e educacional de nosso Estado, sua vida foi sempre um exemplo de abnegação e desprendimento, acima de tudo, de muita dedicação ao ensino da língua materna. Bom por natureza e humilde por vocação, deixo ele o mais belo e edificante exemplo desse sublime sacerdócio. Praticou abnegadamente a virtude dos simples.
Foi sempre um homem pobre, mesmo porque no magistério ninguém enriquece. No entanto, manteve-se constantemente rico de espírito, a disposição habitual para o bem. Irradiava simpatia e contaminava a todos com seu forte otimismo. Nunca uma pessoa inspirou tanta confiança, admiração e segurança quanto o mestre José Saturnino. Habitualmente, trajava terno branco, algumas vezes escuro, sem relaxar a gravata. Por onde passava todos o reverenciavam amigavelmente. Adorava cinema e não perdia o filme estréia da semana.
 Foi o símbolo de uma época, espelho de gerações, modelo do mestre- escola: a sala de aula era o seu apanágio e dela tirou vocacionalmente todo o conforto moral e resignadamente o pão de casa dia, o sóbrio sustento da família. Viveu no tempo em que o magistério era idealismo e o exercício da profissão de educador considerava-se um verdadeiro sacerdócio. Pouco são os professores, hoje, recordados com tanto carinho, tanta veneração e tanto amor, como este velho e saudoso mestre desparecido em 1980.
Ensinando, conversando ou tomando seu aperitivo desopilado em anedotas acumuladas em seu repertório, Saturnino era sempre o mesmo homem: irradiava simpatia e conquistava admiradores. Nunca estava de mau humor. Sempre risonho, disciplinadamente manteve-se feliz até o momento extremo de sua vida, mesmo que tenha desditosamente passado os últimos anos em cima de uma cama. Apesar da moléstia que o vitimou, tornando inoperante e inválido, jamais se converteu em maldizente ou blasfemo: nunca demonstrou insatisfação ou desespero.
Sem ser religioso, no sentido do termo, comportou-se como um Francisco de Assis de quem disse Agripino Grieco que “preferiu ser lacaio de Cristo a ser príncipe dos homens”. Na verdade, Saturnino era mais propenso ao gnosticismo. Afastado dos cultos religiosos, o magistério era sua redenção. Em matéria de credos, ele comportou-se mesmo como um livre pensador e isso nos basta para o bem dessa boa alma.
Foi ele e só ele o idealizador e criador do Clube dos Inocentes para nele praticar o seu agradável modulos vivendi. Implantou nele a filosofia de Marcos Aurélio: viver cada minuto da vida como se fora o último. Saturnino evitava preocupações. Livrou-se de qualquer maldade humana. Manteve-se sempre satisfeito consigo mesmo e com o próximo. Prevendo o “último fim do homem”, pôde refletir com o pagão autor das Meditações: “ necessita-se muito pouco para se levar uma vida feliz”. Depende da própria vontade, sim. A felicidade está dentro de cada um. Demócrito identificou esse estágio de tranquilidade como euthimia, e Sêneca escreveu fartamente sobre esse assunto no seu livro de tranquilitate animi. A euthimia de Demócrito e a tranquilitas de Sêneca consistiam na alegria e na conformação do bem viver, virtudes que nunca faltaram a José Saturnino.
Não foi o próprio Cristo quem aconselhou aos seus seguidores esquecer os tesouros da terra e que não se preocupassem com o dia de amanha? Saturnino viveu a vida intensamente. Soube conscientemente unir a teologia persa esposada por Omar Khayyán – o céu está dentro de vós - à suavidade evangélica - não vos preocupeis com o dia de amanha. A felicidade é uma conformação jamais uma imposição. Ele compreendeu profundamente a grandeza desse comportamento. Libertou-se das desesperadas aflições da vida comum. A isso os estóicos chamavam vida contemplativa – ataraxia – o ideal da imperturbabilidade ou a serenidade da alma, a essência espiritual do ser humano. A felicidade é um estado de espírito.
Ao sentir aproximar-se o momento derradeiro, talvez tenha invocado para si o conselho de Sêneca, esse estóico que tanto se preocupou com a vida e com a morte: - vivere tota vita discendum est – leva-se a vida inteira para se aprender. Eis uma verdade irrefutável. Devo ao prof. Saturnino, com quem convivi 30 anos, ainda a sua biografia. Aqui lha dedico um dos capítulos observados nos seus últimos dias de atividade profissional e recreativa. Aliás, esta parte dos Inocentes estava incluída no livro sobre sua vida. Destaquei-a para publicá-la separada e antecipadamente, uma vez que alguns comentários infundados e precipitados têm sido erroneamente publicados sobre o Clube dos Inocentes. Por trás do mito esconde-se, quase sempre, um fato. O fato é claro e atual. A lenda é obscura e desatualizada. Para elucidá-la, exige-se a literatura de confronto. Antes que o Clube dos Inocentes se misture com a lenda, aqui lhe confronto os fatos na manha de sua criação.
Laus Deo – costumam os antigos escritores repetir ao terminarem sua obra. Prefiro o aforismo de Terenciano Maro para ultimar este comentário: habent sua fata libelli – os livros têm o seu destino. Vamos aos Inocentes.
Natal – outubro de 1990                           J.M





José Melquíades.

Nenhum comentário:

Postar um comentário