Professor
Saturnino e o Clube dos Inocentes
Como não recordar o prof. José
Saturnino? Aquela figura afável, risonha, comunicativa! Saturnino dominou o
cenário natalense com sua presença, sua personalidade e sua participação ativa
nos meios culturais e pedagógicos de nosso Estado e, particularmente, da nossa
cidade de Natal. Professor da várias gerações,deixou a marca de caráter, dos
seus conhecimentos e ensinamentos de vernáculo em casa uma delas. Todos os seus
ex- alunos, amigos e colegas lembram-se dele com verdadeiro carinho e
veneração. Falar em Saturnino desperta a saudade de sua convivência.
Integrado na
paisagem emocional e educacional de nosso Estado, sua vida foi sempre um exemplo
de abnegação e desprendimento, acima de tudo, de muita dedicação ao ensino da
língua materna. Bom por natureza e humilde por vocação, deixo ele o mais belo e
edificante exemplo desse sublime sacerdócio. Praticou abnegadamente a virtude
dos simples.
Foi sempre
um homem pobre, mesmo porque no magistério ninguém enriquece. No entanto,
manteve-se constantemente rico de espírito, a disposição habitual para o bem.
Irradiava simpatia e contaminava a todos com seu forte otimismo. Nunca uma
pessoa inspirou tanta confiança, admiração e segurança quanto o mestre José
Saturnino. Habitualmente, trajava terno branco, algumas vezes escuro, sem
relaxar a gravata. Por onde passava todos o reverenciavam amigavelmente.
Adorava cinema e não perdia o filme estréia da semana.
Foi o símbolo de uma época, espelho de
gerações, modelo do mestre- escola: a sala de aula era o seu apanágio e dela
tirou vocacionalmente todo o conforto moral e resignadamente o pão de casa dia,
o sóbrio sustento da família. Viveu no tempo em que o magistério era idealismo
e o exercício da profissão de educador considerava-se um verdadeiro sacerdócio.
Pouco são os professores, hoje, recordados com tanto carinho, tanta veneração e
tanto amor, como este velho e saudoso mestre desparecido em 1980.
Ensinando,
conversando ou tomando seu aperitivo desopilado em anedotas acumuladas em seu
repertório, Saturnino era sempre o mesmo homem: irradiava simpatia e
conquistava admiradores. Nunca estava de mau humor. Sempre risonho, disciplinadamente
manteve-se feliz até o momento extremo de sua vida, mesmo que tenha
desditosamente passado os últimos anos em cima de uma cama. Apesar da moléstia
que o vitimou, tornando inoperante e inválido, jamais se converteu em maldizente
ou blasfemo: nunca demonstrou insatisfação ou desespero.
Sem ser
religioso, no sentido do termo, comportou-se como um Francisco de Assis de quem
disse Agripino Grieco que “preferiu ser lacaio de Cristo a ser príncipe dos
homens”. Na verdade, Saturnino era mais propenso ao gnosticismo. Afastado dos
cultos religiosos, o magistério era sua redenção. Em matéria de credos, ele
comportou-se mesmo como um livre pensador e isso nos basta para o bem dessa boa
alma.
Foi ele e só
ele o idealizador e criador do Clube dos Inocentes para nele praticar o seu
agradável modulos vivendi. Implantou nele a filosofia de Marcos Aurélio: viver
cada minuto da vida como se fora o último. Saturnino evitava preocupações.
Livrou-se de qualquer maldade humana. Manteve-se sempre satisfeito consigo
mesmo e com o próximo. Prevendo o “último fim do homem”, pôde refletir com o
pagão autor das Meditações: “ necessita-se muito pouco para se levar uma vida
feliz”. Depende da própria vontade, sim. A felicidade está dentro de cada um.
Demócrito identificou esse estágio de tranquilidade como euthimia, e Sêneca
escreveu fartamente sobre esse assunto no seu livro de tranquilitate animi. A
euthimia de Demócrito e a tranquilitas de Sêneca consistiam na alegria e na
conformação do bem viver, virtudes que nunca faltaram a José Saturnino.
Não foi o
próprio Cristo quem aconselhou aos seus seguidores esquecer os tesouros da
terra e que não se preocupassem com o dia de amanha? Saturnino viveu a vida intensamente.
Soube conscientemente unir a teologia persa esposada por Omar Khayyán – o céu
está dentro de vós - à suavidade evangélica - não vos preocupeis com o dia de
amanha. A felicidade é uma conformação jamais uma imposição. Ele compreendeu
profundamente a grandeza desse comportamento. Libertou-se das desesperadas
aflições da vida comum. A isso os estóicos chamavam vida contemplativa –
ataraxia – o ideal da imperturbabilidade ou a serenidade da alma, a essência
espiritual do ser humano. A felicidade é um estado de espírito.
Ao sentir
aproximar-se o momento derradeiro, talvez tenha invocado para si o conselho de
Sêneca, esse estóico que tanto se preocupou com a vida e com a morte: - vivere
tota vita discendum est – leva-se a vida inteira para se aprender. Eis uma
verdade irrefutável. Devo ao prof. Saturnino, com quem convivi 30 anos, ainda a
sua biografia. Aqui lha dedico um dos capítulos observados nos seus últimos
dias de atividade profissional e recreativa. Aliás, esta parte dos Inocentes
estava incluída no livro sobre sua vida. Destaquei-a para publicá-la separada e
antecipadamente, uma vez que alguns comentários infundados e precipitados têm
sido erroneamente publicados sobre o Clube dos Inocentes. Por trás do mito
esconde-se, quase sempre, um fato. O fato é claro e atual. A lenda é obscura e
desatualizada. Para elucidá-la, exige-se a literatura de confronto. Antes que o
Clube dos Inocentes se misture com a lenda, aqui lhe confronto os fatos na
manha de sua criação.
Laus Deo –
costumam os antigos escritores repetir ao terminarem sua obra. Prefiro o
aforismo de Terenciano Maro para ultimar este comentário: habent sua fata
libelli – os livros têm o seu destino. Vamos aos Inocentes.
Natal –
outubro de 1990
J.M
José Melquíades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário