Torturador conta rotina da Casa da Morte em Petrópolis
Tenente-coronel reformado fala sobre casa onde 22 pessoas podem ter sido executadas
RIO — Depois de cinco horas de conversa, o velho oficial estava livre
de um dos mais bem guardados segredos do regime militar: o propósito e a
rotina do aparelho clandestino mantido nos anos 1970 pelo Centro de
Informações do Exército (CIE) em Petrópolis, conhecido na literatura dos
anos de chumbo como “Casa da Morte”, onde podem ter sido executados
pelo menos 22 presos políticos. Passados quase 40 anos, um dos agentes
que atuaram na casa, o tenente-coronel reformado Paulo Malhães, de 74
anos, o “Doutor Pablo” dos porões, quebrou o silêncio sobre o assunto.
No
jargão do regime, revelou Malhães, a casa era chamada de centro de
conveniência e servia para pressionar os presos a mudar de lado e virar
informantes infiltrados, ou RX, outra gíria dos agentes. O oficial não
usa a palavra tortura, mas deixa clara a crueldade dos métodos usados
para convencer os presos:
— Para virar alguém, tinha que destruir
convicções sobre comunismo. Em geral no papo, quase todos os meus
viraram. Claro que a gente dava sustos, e o susto era sempre a morte. A
casa de Petrópolis era para isso. Uma casa de conveniência, como a gente
chamava.
As equipes do CIE, afirmou, trabalhavam individualmente,
cada qual levando o seu preso, com o objetivo de cooptá-lo. O oficial
disse que a libertação de Inês Etienne Romeu, a única presa sobrevivente
da casa, foi um erro dos agentes, que teriam sido enganados por ela,
acreditando que aceitara a condição de infiltrada.
Malhães só não
contou o que era feito com os que resistiram à pressão para trair.
Diante da pergunta, ficou em silêncio e, em seguida, lembrou que nada na
casa de Petrópolis era feito à revelia dos superiores. As equipes
relatavam e esperavam pela voz do comando:
— Se era o fim da linha? Podia ser, mas não era ali que determinava.
Até
terça-feira, quando o militar abriu a porteira do sítio na Baixada
Fluminense aos repórteres, nenhum dos agentes da casa havia falado sobre
ela. O que se sabia era o testemunho de Inês Etienne, colhido em 1971
mas só divulgado em 1979, após o período em que cumpriu pena por
envolvimento com a guerrilha da VAR-Palmares. Outras referências ao
local apareceram em entrevistas e livros de colaboradores do regime,
como o oficial médico Amilcar Lobo, o sargento Marival Chaves (CIE-DF) e
o delegado da Polícia capixaba Cláudio Guerra.
Sentado ao lado da
mulher no alpendre da casa maltratada pelo tempo, Malhães revelou que
já pertencia ao Movimento Anticomunista (MAC) quando ingressou nos
quadros da repressão. Sua ascensão, iniciada com um curso de técnicas
para abrir cadeados, fazer escuta, aprender a seguir pessoas, foi
rápida. Após o golpe militar, passou pela 2 Seção (Informações) e pelo
Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército (RJ) antes
de ingressar no Centro de Informações do Exército (CIE), onde passou a
perseguir as organizações da luta armada pelo país.
‘Eu organizei o lugar’
A
casa de Petrópolis, na Rua Arthur Barbosa 668, Centro, teria sido um
trabalho específico de Malhães já dentro do CIE. Ele afirmou que o
imóvel, emprestado à repressão pelo então proprietário, Mario Lodders,
não era o único aparelho com esse propósito:
— Tinha outras. Eu
organizei o lugar. Quem eram as sentinelas, a rotina e quando se dava
festa para disfarçar, por exemplo. Tinha que dar vida a essa casa. Eu
era um fazendeiro que vinha para Petrópolis de vez em quando — contou
Malhães, que se recusou a revelar o nome das sentinelas e não se deixou
fotografar.
Cada oficial, informou, contava com sua própria
equipe, que podia incluir cabos, sargentos, policiais federais,
delegados ou médicos. De acordo com o coronel, na maioria das vezes, as
equipes trabalhavam com um preso de cada vez na casa. Esse seria o
motivo alegado por ele para desconhecer o destino de presos citados na
lista dos desaparecidos políticos.
— Eu trabalhei uns cinco ou seis. Às vezes, passava de um mês com um — explicou.
O
oficial disse que as táticas para cooptar e formar os infiltrados
variavam, e cada um deles era detalhadamente estudado antes da
abordagem, tanto sua ideologia como a família. Malhães disse que chegou a
ficar preso por 30 dias numa cadeia, disfarçado, em tentativa de
arregimentar um RX. Depois que os presos mudavam de posição, eles eram
filmados delatando os companheiros. No depoimento sobre os cem dias que
passou na casa, Inês Etienne relatou que fingiu ser uma infiltrada e foi
filmada contando dinheiro e assinando um contrato com seus algozes.
Sobre
o destino de alguns nomes de presos, que arquivos ou testemunhas
apontam que estiveram na Casa da Morte, ele disse que o ex-deputado
federal Rubens Paiva não passou por lá, mas admitiu ter visto Carlos
Alberto Soares de Freitas, o Beto, comandante da VAR-Palmares
desaparecido em fevereiro de 1971.
— O Beto talvez tenha conhecido — informou.
Questionado novamente se os militantes da luta armada eram assassinados, ele respondeu:
— Se ele deu depoimento, mas a estrutura (da organização guerrilheira) não caiu, ele pode ter sofrido as consequências.
O
coronel reformado disse que, além da garantia de sigilo, era oferecida
ajuda financeira aos infiltrados, embora nem todos aceitassem. Uma
reunião do PCdoB em São Paulo, afirmou, teria custado R$ 50 mil. Sem
fornecer qualquer prova além das declarações, disse que nem todos os
desaparecidos teriam morrido no período.
— Na lista de
desaparecidos tem RX. E muita gente morreu em combate. Desaparecido é um
termo forçado. Em combate, tudo pode acontecer. E você não vai achar
desaparecido nunca — declarou ele, ao negar as formas conhecidas até
aqui para desaparecimento dos corpos.
Para o ex-preso político
Ivan Seixas, diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política,
Malhães é fundamental para esclarecer o destino dos desaparecidos:
—
Ele foi um dos três coordenadores operacionais da repressão, ao lado de
Freddie Perdigão Pereira e de Ênio Pimentel Silveira, que já estão
mortos.
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