Fonte: Blog de Geraldo Pereira.
sábado, 7 de junho de 2014
Geraldo Pereira e a neta.
Tipos inesquecíveis
Nas
cidades do interior, ensina o mestre Ariano Suassuna, há sempre tipos
que são peculiares às ruas e ao lugar, os quais terminam se integrando
ao chamado dia a dia da cidade. Gente pobre, digo eu por cá, sem eira
nem beira, imagino, que perambula pelos quarteirões, assinalando a
presença, apenas. Gente que depende de um naco de carne ali ou de uns
mil reis acolá. Na metrópole, também, sobretudo nos bairros do centro ou
mesmo em logradouros dos subúrbios, pontificam figuras assim, quase
folclóricas, que terminam passando à posteridade, tal a força com que
marcam as gerações contemporâneas. Conheci muitos desses tipos e só não
os conheço mais, porque deixei o velho hábito de transitar pelo comércio
ou de andar nas periferias, por conta das minhas ocupadas rotinas.
Trago alguns guardados na memória, ainda, caracterizados,pois, com as
roupas de suas fantasias ou com os gestos de seus desejos.
Como
esquecer do altivo “Dono da Rua do Imperador”? Homem franzino e de tez
morena, vestido com uma mistura de fardas das várias corporações
militares, incluindo o quepe, o qual nem sempre combinava com a
indumentária escolhida. Trazia, ainda mais, o peito coberto por
condecorações, as quais atestavam de seu imaginário as bravuras, em
campos de batalha de seus devaneios. Conversei com ele inúmeras vezes na
Festa da Mocidade e terminei entendendo o seu desvario, na condição de
hipotético proprietário de uma via pública e portador de patente
hierárquica superior: General da Cavalaria Submarina! Uma coisa,
verdadeiramente! Patrulhava a Festa toda, na condição de auxiliar o Cabo
Marcha-Lenta, comandante-em-chefe do pelotão local por anos a fio. Mas,
passava ao largo da ilicitude dos meninos jogando o dinheiro dos pais
na viciada roleta. Perdendo em todas as rodadas!
Lolita
era outro e talvez tenha sido o primeiro homossexual assumido do
Recife. Brabo como uma capota choca, pronto para enfrentar quem lhe
desacatasse os brios. Lutava com gente nova e gente velha, dava na
Radiopatrulha, mas terminava curtindo as agruras do xilindró, na velha
Sorbonne da rua da Aurora, como chamava Paulo Malta, sede da Secretaria
de Segurança. Fazia os maiores saracoteios na via pública e aí de quem
lhe interrompesse os espetáculos. Pelas ruas do centro, também,
circulava o “Reitor da Universidade Livre”, um homem negro, alto e
forte, gordo, vestido a caráter, de paletó e gravata, sempre, não
raramente de colete. Usava uma medalha pendente no peito. Em uma
solenidade da Universidade do Recife, que precedeu a atual, UFPE, não
foi chamado para a mesa que presidia os trabalhos e retirou-se do
recinto em sinal de profundo protesto. Não suportou a desfeita de se
misturar aos comuns; comuns do tempo e da hora! Fez muito bem!
Na rua em que
morava existiam alguns desses tipos inesquecíveis. Um desses, Sabará,
por apelido, de quem nunca soube seu nome, sequer o prenome, comparecia,
todos os dias, completamente embriagado e cantava a plenos pulmões, a
cada manhã: “Tornei-me
um ébrio e na bebida busco esquecer/Aquela ingrata que eu amava e que
me abandonou./ Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer./
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou...”. Fazia de Vicente Celestino o seu ídolo, mas nunca descuidou da ironia fina com que tratava os circunstantes. Foi assim, que me vendo sair para a Faculdade, carregado de livros e cadernos, não hesitou: “Quando eu era menino, ia para a escola com uma carroça de cavalo cheia de livros. Esse ai, pensa que vai ser gente com quatro livros e três cadernos.”. La pela rua em que morou minha mãe, ainda circula “Piuite”. Já morreu, teve missa de 7º dia, orações gregorianas e ressuscitou ao trigésimo dia, sob as lágrimas pungentes de Paulo Brusky. Rebate falso da violência reinante!
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou...”. Fazia de Vicente Celestino o seu ídolo, mas nunca descuidou da ironia fina com que tratava os circunstantes. Foi assim, que me vendo sair para a Faculdade, carregado de livros e cadernos, não hesitou: “Quando eu era menino, ia para a escola com uma carroça de cavalo cheia de livros. Esse ai, pensa que vai ser gente com quatro livros e três cadernos.”. La pela rua em que morou minha mãe, ainda circula “Piuite”. Já morreu, teve missa de 7º dia, orações gregorianas e ressuscitou ao trigésimo dia, sob as lágrimas pungentes de Paulo Brusky. Rebate falso da violência reinante!
E Zé Ventinha? Um
pobre homem com uma lesão no nariz e que se indignava se lhe puxassem o
paletó. Fiz isso diversas vezes e corri, sempre, feito um louco, para me
livrar da ira e do desvario. Deus me perdoe dessa maldade!
sábado, 31 de maio de 2014
Cegueira de Ocasião
Chegou
para trabalhar já passava mais de trinta minutos da hora aprazada, a do costume
de todos os dias; mas, enfim, chegara. Naquela noite estava, particularmente,
atarantado, tinha assistido à aula sobre tétano na Faculdade e aquilo o
incomodava terrivelmente: era um hipocondríaco de livro. Soube de sua angústia
e esperei pela chegada do chefe, a quem fui receber à porta do Centro de Saúde
Gouveia de Barros. Contei o ocorrido e pedi que fizesse uma fisionomia de
admiração, indagando-lhe o que havia. Vale a explicação de que a doença
(tétano) provoca um riso especial, considerado nos compêndios de propedêutica
como um “riso sardônico”. Foi assim: “Mas, o que há com você Valdir? Que riso é
este?”. E o grande Valdir, diante de tanto espanto, de tanta surpresa, ficou de
pé, levantou os dois braços e gritou em alto e bom som:“Estou com tétano!”.
Quase enlouquece com as nossas dúvidas.
Era uma
figura comum, igual a todos os outros estudantes de medicina, mas tinha essa
peculiaridade, a hipocondria que o levava ao desespero, bastava estudar uma
doença nova. Dizem que depois de formado, tendo ganho um bom dinheiro pras
bandas do Maranhão, transformou-se em fazendeiro e hoje vive contando as
cabeças de gado nos vários currais de que dispõe. Certa vez, porém, estudando
em casa de um colega, na companhia de outros companheiros do curso, cismou que
tinha engolido um pedaço de vidro da garrafa de coca-cola. A turma, matreira,
como era, quebrou o bocal do recipiente e um deles perguntou alto: “Quem foi
que quebrou a boca da garrafa de coca-cola?”. Só podia ter sido ele: Valdir.
Repetiu, então, o gesto, de pé, com os braços levantados, deu o seu grito de
guerra: “Engoli um pedaço de vidro!”. O grupo não fez por menos, levou o colega
ao pronto socorro e assistiu de camarote o médico fazer radiografia de todo
tipo, contanto que ficasse provado que o bocal não estava em seu estômago.
Os
colegas se reuniam sempre para estudar e numa ocasião qualquer, um deles
decorou parte do texto, enquanto outro apagava a luz. O nosso protagonista, de
imediato, alertou: “Faltou luz!”.Mas o interlocutor que estava lendo o assunto
da noite continuou falando e ainda insistia com Valdir: “Cala boca Valdir!
Acompanha a leitura!”. O homem– pobre homem! -, gritou a plenos pulmões: “Estou
cego!”. Foi uma risadaria geral e a ridicularia tomou conta do lugar. Valdir
quase dá em gente com a raiva da hora.
Era
assim o nosso colega das noites de trabalho no Centro de Saúde. Adoecia com
toda doença que estudava, como se fosse ele mesmo o primeiro cobaia dos males
desse mundo de Deus.